Os Estados Unidos são um país de extremos. Tanto uma personalidade como uma obra do entretenimento podem ser elevados aos céus ou condescendentemente desconsiderados, escarnecidos e desprezados.
Surja a mais levemente fundamentada possibilidade de exclusão de um determinado elemento do particularmente tóxico meio da celebridade e do seu produto, o país de Donald Trump tem-se vindo a revelar um dos menos aliciantes palcos para os cineastas, guionistas e atores, seja para o bem ou para o mal.
Variadas foram as crónicas (especificamente publicadas no Hollywood Reporter) relativas à aparentemente inesperada e absurda vitória do último filme de Peter Farrelly na passada cerimónia dos prémios máximos da Sétima Arte, ora devido à amenização de temas bem presentes no atual cinema crítico e intervencionista (sirvam-se de exemplos o de Spike Lee, Jordan Peele ou Ryan Coogler), à subtileza discutivelmente caricatural ou à supressão dos verdadeiros elementos da história apresentada (resultado do texto da autoria do próprio realizador, do Brian Hayes Currie e do Nick Vallelonga, o filho mais novo do protagonista italo-americano).
É curioso que um filme sobre perigosos preconceitos tenha sido tamanho alvo de preconceitos, diga-se, aliás, desmerecedores. Não que “Green Book” seja a história de 2018 mais digna de receber o ouro apogístico da Academia (até porque, sejamos novamente sinceros – aquele vale o que vale). Releve-se o facto de Peter Farrelly, conhecido por comédias impecáveis dos anos 90 como “Doidos à Solta” e “Doidos por Mary”, não ter sido nomeado para Melhor Realizador, uma vez que uma excelente realização é sinónimo de um excelente filme. Pelos vistos, a julgar pelo sistema de voto da Academia, a comédia dramática protagonizada por Viggo Mortensen e Mahershala Ali terá sido considerada (em diversos Top 10 e festivais) uma das melhores virtudes cinematográficas do ano passado – o cinema mais consensual.
E bem nós sabemos que se há coisa que os americanos gostam é de consensualidade, sobretudo quando debruçados perante o dilema da atribuição da vitória a 1 de 8 filmes, nos quais 3 lidam com distintos cenários históricos de racismo nos Estados Unidos. “Green Book” foi apelidado de uma mera narrativa do “salvador branco”, um filme para o homem branco não se sentir culpado por séculos de escravidão e negligência, argumentando-se tal perspetiva recorrendo ao nulo conhecimento que a família viva de Don Shirley tinha acerca do projeto distribuído pela Universal Pictures, acusando o guião de mentiroso e oportunista.
Tais situações e comentários devem ser levados em conta, mas, para quem vos escreve, somente depois de visto o referido filme. Jornalistas ou não, críticos ou não, cronistas ou não, todos aqueles que assistirem ao recente vencedor do Óscar de Melhor Filme deverão desligar as células neuronais mais nervosas e percecionar o filme… como um filme. Fica claro que a definição de preconceito vai bem mais além das ideias racistas permanentes na sociedade americana.
E que gentinha triste esta. Esta que preconiza aquilo que desconhece, classificando “Green Book” como cómodo em demasia, uma prenda para suavizar o homem branco que, em pleno 2018, se sente arrependido por simbolizar anos e anos de injustiça racial global. Pois bem, não foi ainda nesta sala de cinema que me senti acomodado. Pelo contrário, se há pessoa que deve ficar constrangida é, sim, o homem branco, mas pelas razões certas. Muitos protestaram contra a inclusão de Viggo Mortensen na categoria de Melhor Ator e de Mahershala Ali na de Melhor Ator Secundário (no último caso, curiosamente, que acabou por levar a sua avante), imperando que os atores americanos dessem as mãos na mesma categoria, não fosse esta uma ofensa para os personagens ou para a respetiva pele.
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Ao que parece, todos aqueles que ardem cegamente tochas em plena praça digital são imunes à real narrativa de “Green Book” – a do homem branco grosseiro, indecoroso, desairoso, violento, mal-educado, irresponsável, ignorante, preconceituoso e (surpresa!) racista numa viagem de carro lentamente a ser o objeto de processamento do elegante e benévolo virtuosismo do garboso, retraído, cauteloso, prudente, carismático, reprimido e solitário pianista preto gay. E, como aconteceria invariavelmente, 30 anos depois de “Driving Miss Daisy” – entenda-se como mais uma estratégia de populismo e do habitual falso enquadramento racial – as atenções foram para “Green Book”, onde o leme foi tomado pelo branco ao serviço do preto, guiando-se pelas planícies sulistas americanas nada amigáveis para os descendentes de africanos.
Errado é a prática de elevar a constituição de uma obra com base singularmente na sua abordagem temática, com base naquilo que decide comentar. Sim, não é por falar sobre determinado assunto fraturante, intemporal ou polémico que um filme (e entenda-se uma série, música ou até um quadro) deverá ser automática e irrefletidamente considerado sensacional. No entanto, prejudicado somente por relevantes defeitos, “Green Book” conquista o seu alvo, aduzindo-se com intermináveis, recorrentes e leves momentos de comédia e necessariamente calorosas notas terminais de esperança (salvo uma única e mal-executada exceção), face aos ainda existentes agoniantes retratos de comportamentos passivos e/ou disfarçados de racismo.
Auxiliada por uma subtileza visual e técnica (verifique-se na escolha atenta das cores primárias pelo Sean Porter e no trabalho de câmara minimalista possivelmente aquém do potencial ou ambições do realizador de 62 anos), “Green Book” é uma oferta, como seria de esperar, de um perfeito duo de interpretações composto pelo bronco e esfaimado Viggo Mortensen, visivelmente gordo e dedicadíssimo aos traços de personalidade tipicamente italianos, e pelo reservado e entristecido Mahershala Ali, reminiscente de um magistral íman de simpatia e bondade.
Na sombra dos dois colossais camaleões estão Dimiter D. Marinov e Mike Hatton, subutilizados na interação entre as duas caras antagónicas principais. Uma oportunidade perdida do texto. Já a Linda Cardellini, no canto doméstico ocupado pela mulher ao serviço da família nos reconhecidos anos 60, estabelece forte e distantemente a sua presença, agarrando-se às cenas divididas com Viggo Mortensen e às cartas trocadas pelos dois.
Não fosse uma cena particularmente manchada pela excessivamente dramática e óbvia ascensão musical, pertencente ao regularmente simpático e melodioso trabalho do Kris Bowers, o tom de “Green Book” seria exemplar para a futura execução de histórias prazerosas ao espectador, dos chamados feel good movies, precisamente uma praga para os públicos atuais, que simultaneamente lamentam a inextensiva lista de cineastas suficientemente corajosos para abordar a controversa conversa do racismo nos Estados Unidos e repreendem as tentativas ligeiras de acomodar o público diligentemente cansado de filmes de escravidão. Não queira isto dizer que se deverá parar de oferecer filmes horrendamente poderosos como “12 Years a Slave”.
É bom que os males do ser humano não parem de fielmente aparecer nas grandes telas. Precisamos de saber e de nos memorizar eternamente o quão feia é a nossa espécie. Mas não censurem as práticas de storytelling menos ousadas, audazes, gráficas ou compromissadas. Novamente, todas se podem resumir em propagandas favoravelmente apontadas às massas e aos privilégios. Mas, na condição de cinéfilo sentado atrás de um teclado, que autoridade tenho eu de afirmar algo como factual? Nem escrever nem realizar são mais do que isto – a inspirada e consciente defesa de uma proposição.