Baseado no livro homónimo do americano Ray Bradbury, publicado em 1953, o filme decorre num futuro distópico numa América pós-Segunda Guerra Civil em que os bombeiros agem como membros do exército e vivem, em consequência da escrita automatizada, em função de queimar livros e outros tipos de informação que o governo e a sociedade consideram, de alguma maneira, prejudicial. Guy Montag é um bombeiro prestes a subir para o cargo de Capitão, mas a ascensão é interrompida quando este começa a duvidar de tudo.
Geralmente, os filmes para televisão americanos costumam ser medianos ou medíocres. No entanto, mesmo com a oferta de “The Wizard of Lies”, uma péssima biografia de 2017 sobre o Bernard Madoff que nem o Robert De Niro conseguiu salvar, a HBO já provou que consegue produzir bons conteúdos. Vejamos “All the Way”, a biografia sobre o Lyndon Johnson de 2016 com o Bryan Cranston. Em que categoria será que “Fahrenheit 451” se insere?
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Antes de descrever qualquer aspeto que seja do filme, é preciso realçar que, como raramente acontece, estou completamente de desacordo com praticamente todos os críticos que acharam o filme medíocre. A verdade é que assisti a “Fahrenheit 451” sem as mínimas expectativas devido a tudo o que já tinha lido (mesmo estando ciente da qualidade do livro e da existência de uma adaptação de 1966 das mãos do François Truffaut).
Não se tratando de uma obra-prima, ainda assim fiquei bastante surpreendido e interessado. O filme foi escrito e realizado pelo americano de descendência iraniana, Ramin Bahrani, responsável pelos ótimos “Chop Shop”, de 2008, e “99 Casas”, de 2015. Ele é muito bom! Algo que ele faz de imediato aqui é realçar o aspeto futurista e até opressor do futuro apresentado.
Alguns planos são muito simétricos. Toda a restante fotografia faz questão de mostrar a evolução tecnológica que, discutivelmente, poderá um dia existir. Existe uma escuridão constante em todas as composições visuais, independentemente das cores usadas, que reforça a distopia. Estava totalmente imerso naquela realidade, pois o realizador sabia o que estava a fazer.
Todo o filme é literal e metaforicamente opressor. Há um desconforto e tensão constantes e tudo é mantido graças à banda sonora sombria (mesmo esquecível), à premissa em si como ao elenco. No fundo, mesmo contando com uma exposição inicial excessiva, o filme é um comentário sobre os sistemas de censura atuais, o conservadorismo, os falsos valores do patriotismo americano, as excessivas normas de vigilância impostas e até sobre o comportamento da sociedade, digamos, na via virtual.
Atualmente, é recorrente ver discussões, temas tabus, ou até simplesmente palavras/conceitos, a serem deliberadamente ignorados para se evitar ferir suscetibilidades, ou dito por outras palavras, calar para não ofender ou incomodar. Tais costumes não são unicamente característicos de ditaduras, aliás, estão cada vez mais a serem praticados em qualquer sociedade ocidental. É esta discussão que torna o filme tematicamente rico.
As performances são impecáveis. O Michael B. Jordan prova novamente que é um ator promissor e que não vai parar tão cedo. O carisma é imediato, é verdade, mas o arco é mais importante. Todas as mudanças de crenças do personagem têm uma justificação e é muito fácil torcer por ele… Mesmo sabendo onde é que este começou e a maneira como o seu caráter foi moldado.
O Michael Shannon demonstra mais uma vez como se desenvolve um antagonista. Mas ao contrário de alguns papéis anteriores, o personagem não é assim tão unidimensional como se pode esperar. O vilão tem uma motivação clara, tem razões que justificam a sua revolta, é manipulador, malicioso e tem até uma característica individual que repugna.
É difícil saber o que esperar da Sofia Boutella devido ao seu histórico como atriz, mas desta vez foi igualmente fácil ficar do lado dela, pois a sua personagem, mesmo não tendo um grande arco, representa o outro lado da moeda e tem os seus valores definidos. Ela e o Michael B. Jordan têm química, mas a ideia de um romance entre os dois, para além de ser abandonada a meio, é completamente inútil para a trama. Tudo o que muda entre os dois podia perfeitamente acontecer sem um arco amoroso.
O Keir Dullea faz uma aparição, não há nada para comentar acerca da sua cena, mas é bom saber onde anda o David Bowman do 2001: Odisseia no Espaço. Para além de aspetos negativos já mencionados, o filme tinha ainda uma questão relevante para resolver. O facto de diversos livros, de filósofos e romancistas da História, terem servido como inspiração para outros conteúdos, nomeadamente audiovisuais.
Gostaria de saber mais sobre os filmes e séries que seriam proibidos no futuro representado. Para fechar, como já disse, a tecnologia é muito visionária, talvez até demais. Eu aceitei até as coisas mais inacreditáveis que envolviam medicação, bem como o ADN humano. Mas há especificamente uma inovação que é simplesmente um tremendo exagero.
“Fahrenheit 451” precisava de uns acertos, porém é um bom retrato de uma possível distopia americana. Um comentário social relevante sobre a liberdade de expressão e a importância dos movimentos e obras literárias e artísticas de toda a Humanidade.