“I Know This Much is True” – Da infelicidade possível

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Em maio, quando a HBO estreou em Portugal “I Know This Much is True”, o mundo estava a atravessar, na sua primeira vaga, o pico de uma pandemia…

… que prometia não só mudar a face do consumo de entretenimento a nível global, mas também alterar comportamentos, muitas vezes à custa de perdas em termos sociais e económicos.

O entretenimento presente nas plataformas de streaming é predominante e tendencialmente feliz ou tende a mostrar que no fim tudo acaba bem. Por esse motivo e por muitos outros, não querendo este artigo simplificar ou encontrar respostas para um fenómeno demasiado profundo para ser resumido ou falado quando está ainda tudo tão presente para todos, quando a minissérie da HBO estreou, muitas foram as reações negativas ao excesso de tristeza que nela pululava.

A experiência de visionamento da série exige quase sempre uma preparação de espírito para conseguir apreender pormenores e mensagens, mas também conseguir apreciar uma peça de excelente televisão com os sentidos suficientemente despertos e abertos a modos diferentes de tratar temas muito sérios e complexos.

Rosie O'Donnell e Mark Ruffalo

“I Know This Much is True” é a adaptação do best seller homónimo de Wally Lamb, de 1998, com 900 páginas e um fim fechado e que o realizador Derek Cianfrance optou por transformar em série com final aberto e em jeito de homenagem a todos os que perderam familiares próximos – como o próprio realizador, que perdeu a irmão quando se preparava para iniciar o processo de edição da série, e o ator principal, Mark Ruffalo, cujo irmão foi assassinado há cerca de uma década.

São seis episódios cuja duração ronda uma hora cada, em que é contada a história dos gémeos Dominick e Thomas Birdsey, vivendo algures nos duros anos 90, ambos os personagens interpretados por Mark Ruffalo no papel que lhe valeu o prémio de Melhor Ator numa Minissérie ou Telefilme na edição deste ano dos Emmy.

Dominick sofre de esquizofrenia e é Thomas que se encarrega de tomar conta do irmão, num ato de autossacrifício impressionante que, em muitas situações, prejudicam a sua vida diária e mesmo o seu próprio bem-estar mental.

Se “I Know This Much is True” não é fácil de ver nem de digerir, tal não significa que não seja uma das melhores séries atualmente nas plataformas de streaming, simplesmente exige muito mais do seu espetador, mesmo correndo o risco de o ambiente que envolve toda a história acabar por retirar muitos pontos na avaliação global da série.

São sobretudo as interpretações o grande motivo pelo qual não se abandona a série, com Mark Ruffalo numa das melhores interpretações da sua carreira, de tal forma que, a meio, é bem possível que o espetador se esqueça que não está a ver dois Mark Ruffalos, mas apenas o mesmo ator em dois momentos diferentes da sua interpretação.

Um dos componentes mais importantes para a criação dos dois personagens, completamente antagónicos, mas ao mesmo tempo, interdependentes, foi a técnica a que o realizador Derek Cianfrance decidiu recorrer. Em todos os momentos em que cada um dos gémeos atua, há sempre um ator real a contracenar com Mark Ruffalo, que o próprio ator elogiou copiosamente pelo seu excelente trabalho e por ter permitido a expansão dos personagens de forma muito mais verosímil do que com o recurso a meros efeitos especiais.

“I Know This Much is True” é um trabalho técnico impressionante com um alcance muito mais abrangente que o simples contar de uma história, mesmo que trágica. É disso que se trata, as vidas trágicas de dois homens ligados indelevelmente, os seus passados dolorosos com uma família problemática, os castigos, arrependimentos, o desejo de uma liberdade quase impossível de alcançar.

À medida que se caminha para o final da série, há uma sensação quase incómoda de que nenhum dos personagens de “I Know This Much is True” são verdadeiramente livres, mesmo quando acreditam sê-lo. O relacionamento asfixiante entre Dominick e Thomas é o espelho do relacionamento primordial de Caim e Abel, em última instância, se se quiser, impossível de quebrar e repetido ad nauseam.

“I Know This Much is True” é uma recriação dolorosa desse relacionamento, mas é um caminho assumido por Derek Cianfrance para a libertação humana através da arte, ao encarar de frente os seus traumas, perseguir a dor para que esta possa desaparecer depois de confrontada.

“I Know This Much is True” é um processo próprio de cura sobre o qual o realizador é sobejamente vocal e honesto e talvez seja por isso que cada espetador terá o seu próprio relacionamento com os temas da série e o modo como são transpostos. Não terá sido por acaso que Cianfrance optou por filmar em película de 35mm para conceder ao filme aquele ambiente sóbrio e sério cheio de grão, bem definido, com tonalidades tristes, consentâneas com o estado de espírito generalizado de um quase constante pesar.

A minissérie acaba por ser uma pérola que se descobre porque dela se conhece mais do que o que está à superfície e, sobretudo, porque o elenco é absolutamente fantástico como um todo, com Mark Ruffalo à cabeça. O papel inesperado da comediante Rosie O’Donnell como a assistente social Lisa Sheffer é outro dos pontos altos no que diz respeito a atuações e a dinâmica estabelecida entre Thomas e Lisa é tão forte que os seus encontros representam alguns dos expoentes máximos da série.

Os atores são vocais igualmente em relação ao papel de Derek Cianfrance em estabelecer um ambiente de extrema confiança e amabilidade durante as filmagens, para além da enorme margem em explorar os seus personagens e as possibilidades para os seus caminhos. Essa liberdade está patente nas impressionantes atuações de Ruffalo e de O’Donnell, que em escassos momentos de intimidade e silêncio conseguem arrancar aqui uma das melhores atuações em televisão neste ano de 2020.

Derek Cianfrance correu um duplo risco com “I Know This Much is True”: fez uma minissérie sobre um estado de infelicidade e dor quase permanentes que, por coincidência, estreia numa altura em que a maioria dos espetadores clamava por entretenimento e diversão.

O risco deu certo, acima de tudo, porque Mark Ruffalo existe e é o protagonista, de outro modo, o discurso talvez fosse outro completamente diferente, mesmo tendo com consideração os interessantes e densos temas focados na série.

O visionamento foi, para a autora do artigo, lento, mas necessário para encontrar o espírito certo e, nesse sentido, a experiência é muito diferente para quem vê, faz respirar a história, o que foi visto, é preciso dar tempo aos personagens para que façam sentido no contexto, é preciso perceber as ligações familiares, a cura que o tempo traz consigo, a importância de não desistir e de quando saber desistir.

Ao mesmo tempo, a experiência pessoal fica marcada pelo momento em que, tantos anos volvidos, o cérebro faz a relação definitiva com as palavras proferidas na canção dos Spandau Ballet, as mesmas que dão título à série, “I Know This Much is True”. E, assim, a relação com a série fica marcada pelo inusitado pessoal, mas também pelo contexto especial em que a ela se assiste, um tempo inédito e inolvidável, nem sempre pelas melhores razões.

Derek Cianfrance entrega-nos uma série intensa de experiências pessoais, cheia de mestria e intensões nem sempre óbvias, mas sempre carregadas de significado, cabendo ao espetador retirar delas tanto as conclusões objetivas como as subjetivas, privadas, pessoais, as suas oportunidades de cura.

“I Know This Much is True” é um olhar intenso e focado nas relações familiares fortes e inevitáveis. Aquilo que liga Dominick e Thomas vai muito para além do racional, é uma relação ancestral de gémeos que remete para o olhar no espelho, o reflexo, a impossibilidade de escapar à mensagem que o outro nos envia.

Dominick é o gémeo ancestral que corta a mão direita seguindo o preceito bíblico que diz que se for a mão direita que fez pecar, esta deve ser removida. Que pecado terá cometido Dominick, terá sido o de participar na guerra do Vietname? Será o de não conseguir libertar-se da sua própria mente torturada? E que vê Thomas ao olhar para o irmão que se auto mutila, que é tanto a sua cruz como a sua última ligação ao passado impiedoso, obscuro e cheio de segredos?

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Seja qual for a visão ou conclusão que se queira retirar de “I Know This Much is True” ou mesmo que se aceite o seu final tal como é, esta é uma série à qual é impossível ficar indiferente. Seja pelas interpretações, seja pela banda-sonora (tão melancólica como tudo o resto), pelas técnicas de filmagem ou pela história que se presta a muitas interpretações (felizmente), conseguir ultrapassar a dificuldade inicial é uma aposta ganha.

“I Know This Much is True” não é, com toda a certeza, o melhor entretenimento presente em televisão, mas é, isso sim, uma experiência intensa que pode ser tão libertadora para quem assiste como foi para toda a equipa que a produziu e realizou. Sente-se na pele que, mais do que uma série, é um processo, uma aprendizagem e uma enorme lição de que nem sempre as coisas mais óbvias são as que têm mais para oferecer – mesmo que, para isso, tenha de doer um pouco.

“I Know This Much is True” está disponível na HBO Portugal.

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