De modo a reconhecer o mérito do mestre das palavras, apresentamos algumas das melhores linhas de diálogo criadas pelo realizador e argumentista Quentin Tarantino.
Quando se fala em Tarantino a primeira coisa que vem à cabeça é sangue, muito sangue. Mas, aos mais atentos, é possível elencar um outro aspeto bem característico do realizador: os diálogos. Estes, e também os próprios monólogos criados pelo realizador, são absolutamente magistrais. Trata-se, muito provavelmente, do melhor entre a comunidade cinematográfica no que à escrita diz respeito. A eloquência da sua escrita é enorme, o que, com os atores certos para o desempenho de determinados papéis, o objetivo de criar algo magistral fica sempre mais perto de ser atingido.
A retórica usada é sublime. A linguagem criada pelo realizador é extremamente eficaz e consegue, da melhor forma, persuadir quem vê, fazendo com que se consiga compreender as emoções e criar uma certa empatia com as personagens, mesmo gostando mais dos vilões ou dos bons da fita.
O senhor dos filmes falados faz disso mesmo o seu maior trunfo. Usa uma linguagem marcante, adequada e, sobretudo, coerente com o tipo de filmes que faz. Tem, dentro desse mesmo tipo de filmes, um tipo de escrita muito próprio, característico, que, por consequente, se revela elegante, fazendo com que todas as cenas e todo o filme seja bastante coeso.
Ver também: Como ser um bom ladrão cinematográfico – As trademarks de Tarantino
Apresentamos, de forma aleatória, algumas das melhores linhas de diálogo (e alguns dos melhores monólogos) daquele que é o mestre das palavras e também o dito exagerado, mas que verdadeiramente não exagera em nada, no sangue deixado pelas suas personagens nos seus filmes.
A (nada) banal conversa entre Jules Winfield e Vincent Vega em “Pulp Fiction”
Linha de Diálogo: Holanda, França, hambúrgeres, “a foot massage” e toda a cena.
A cena começa com uma conversa sobre algumas das pequenas diferenças entre a Europa e os Estados Unidos, mas que fazem bastante sentido. A banalidade do assunto sobre o qual se centra a conversa, pela forma como é construído o diálogo, vira, encarando estes termos como qualidades, algo invulgar e distinto. Para além disso, serve também de suporte para uma outra conversa, ainda dentro dessa mesma cena, onde se volta a falar, tal como aqui, sobre a significativa insignificância do tema.
Entre esses dois momentos, surge um outro de pura genialidade. O suposto passar dos limites com uma massagem nos pés, mais concretamente nos pés de Mia Wallace (Uma Thurman). Da entrada no prédio à entrada no apartamento, passando pelo elevador e pelos corredores, o tema é debatido pelos dois de uma forma tão natural e autêntica, que chega a arrepiar pelo momento estar tão bem escrito e ser tão bem executado.
Como arranjar o pretexto para matar em “Os Oito Odiados”
Linha de Diálogo: A humilhação e a morte do filho do General Sandy Smithers.
Está por trás de todo este diálogo o racismo de parte a parte. A humilhação que Marquis Warren (Samuel L. Jackson) supostamente infligiu ao filho do General Smithers (Bruce Dern) é contada de forma tenebrosa. O que é dito e a forma como é dito, eleva a cena bem alto. Passa, e muito, a linha limite do sarcasmo, atingindo uma violência tremenda.
Samuel L. Jackson tem, em todo o filme, um desempenho formidável. Esta cena, com este monólogo, é um exemplo que comprova isso mesmo. É possível ver, pela forma como Marquis Warren se vangloria daquilo que fez, o prazer e a satisfação que a personagem de Samuel L. Jackson sente. E isto é muito mérito do ator, mas também, de quem escreve o texto.
A denúncia da dactilonomia em “Sacanas Sem Lei”
Linha de Diálogo: A reunião secreta que dá o mote para o jogo “Quem sou eu?” e para o festim sangrento.
“Há um lugar especial no inferno reservado às pessoas que desperdiçam um bom whisky”. A citação é de Lt. Archie Hicox (Michael Fassbender), um tenente alemão, mas que não concordava com os planos de Hitler. Esta pequena frase é apenas uma de muitas que surgem no bar onde se passa a ação. Aqui Tarantino consegue criar o ambience necessário para chegar onde quer. A partir de um jogo, o realizador tem a perspicácia necessária para iniciar e dar o rumo certo ao diálogo para atingir o seu objetivo.
Quentin Tarantino constrói uma espécie de teia que faz aprisionar todas as personagens no mesmo local. O enredo é brilhante. Cada ator e atriz e, por consequente, cada personagem, contribui para isso da melhor forma. O que dizem e a forma como dizem não atrapalha em nada, serve “apenas” para acrescentar. E quando se acrescenta àquilo que já é muito bom, constrói-se algo magistral.
Quando volta o assombrar dos Mauritanos em “Amor à Queima-Roupa”
Linha de Diálogo: A humilhação de Vincenzo Coccotti por parte de Clifford Worley.
Clifford Worley diz que “Os italianos, mais precisamente os sicilianos, têm sangue negro nas veias”. É uma alusão ao tempo em que os Mouros pisaram em terras europeias, mas especificamente, em Itália. Worley diz, de forma intencional, o que é encarado por parte de Coccotti como humilhação. A inferioridade que a dita raça negra tem perante a raça branca é bem sentida pelo italiano, numa época em que estavam bem patentes esses sentimentos de racismo e esse sórdido pensamento, de que haveria uma diferença entre raças.
A qualidade daquilo que é dito, tendo em conta todo o ambiente da cena, é tal, que marca pela diferença, não se tornando em apenas mais uma deixa “à gangster“, mas sim num paradoxal triunfo que dita a sua sentença de morte.
O silenciar do dialeto sem causar estranheza entre Mia e Vincent em “Pulp Fiction”
Linha de Diálogo: Um milkshake de cinco dólares, as “Fox Force Five” e as consequências de uma massagem nos pés.
Uma das atrizes e um dos atores mais promissores da época, executam um dos melhores diálogos criados pelo mestre Tarantino. É primorosa a forma como a conversa flui. Fazer quase do nada algo que, e admitindo que a perfeição é inatingível, algo que roça essa mesma perfeição, é, mais que notável, genial.
Escrevendo sobre outros aspetos que compõem toda a cena e que ajudam a que esse mesmo diálogo flua da melhor forma, afirmar que, para além da postura dos atores, a fotografia, a cenografia e a banda sonora são outros grandes alicerces para que tal aconteça.
O lançar do boomerang que rapidamente teria volta em “Django Libertado”
Linha de Diálogo: Monólogo sobre o crânio do velho Ben, um escravo que cuidou do pai e do avô de Calvin.
Aquele que é o primeiro verdadeiro vilão de Leonardo DiCaprio, Calvin Candie, diz ainda que existem três covas distintas no crânio e que, dependendo do sítio onde se encontram, mostram o que melhor caracteriza as pessoas, estando as dos escravos ligados à submissão. “No crânio deste africano, a zona associada à submissão é maior do que em qualquer outra espécie humana ou sub-humana do planeta Terra”.
A louca ideia de que, quem tinha um tom de pele mais claro era superior aos outros, na altura era vista como, mais do que normal, verdade absoluta, e que devia ser seguida. Um discurso completamente absurdo sobre a lunática ideia da supremacia branca, dão a Leonardo DiCaprio uma das melhores cenas naquela que é a personagem que mais diverge das outras todas que encarnou.
O pequeno-almoço em duplo sentido, preenchido com música em “Cães Danados”
Linha de Diálogo: Conversa sobre a música “Like a Virgin” e o critério a seguir para deixar gorjeta.
Uma música e uma descrição sem qualquer pudor, bárbara, ríspida, torna uma cena que podia ser banal, num momento de pura genialidade. A elegância com que a cena é feita, com a câmara a rodar em volta de todos à mesa, conseguindo captar a expressão facial e corporal de todos, incluindo de quem apresenta a própria ideia (no caso, a personagem interpretada pelo próprio Quentin Tarantino, Mr. Brown), faz exaltar o talento de todos, incluindo de quem escreve a cena.
Por muito ilusória e irrisória que possa parecer a ideia, o que é dito, pela forma como é dito, faz com que se acredite nesse mesmo pensamento. Este pequeno-almoço reúne todas as peças que, bem montadas, dão lugar a uma das melhores cenas de abertura do cinema.
A verdade incontroversa em “Kill Bill: Vol. 2”
Linha de Diálogo: Um dilema, comic books e a mitologia do Super-Homem.
Primeiro há toda a encenação da personagem de David Carradine. Bill começa por dizer que o luar a iluminar a praia criaria o local perfeito para cruzar as espadas Hanzo. A seguir, expõe à personagem de Uma Thurman um dilema e a solução para o resolver: um dardo com o soro da verdade. Depois as bandas desenhadas, os alter egos dos super-heróis e a mística do Super-Homem, que é, segundo Bill, o que o diferencia de todos os outros. Por fim, um rápido resumo da vida de Beatrix Kiddo e a comparação dela própria ao seu super-herói favorito. Uma linha de diálogo simples, mas com conteúdo. Um quase monólogo de cinco minutos que dá à cena a solidez que ela precisa.
O irónico interrogatório que leva à inevitável confissão em “Sacanas Sem Lei”
Linha de Diálogo: Um copo de leite e a caça aos judeus.
A cena tem tudo do melhor que há. Um início poderoso, com uma banda sonora que o acompanha da melhor forma, um diálogo esplêndido, com uma personagem, a de Christoph Waltz, o “caçador de Judeus”, de uma arrogância tremenda, e um final esplêndido.
A condução da conversa por parte do Col. Hans Landa é feita de forma sublime, levando a mesma por onde quer. É ele quem dita o seu rumo e quem decide o que será feito a seguir. Enunciar que os ratos espalham doenças e fazendo o pacato monsieur LaPadite concordar com isso, comparando-os de seguida aos judeus, não dá outra hipótese ao camponês que a não concordância com o coronel. Aí surge a inevitabilidade de entregar quem estava sobe a sua alçada, declarando a sentença de morte à família judaica.
A elegância com que tudo é dito e com que tudo é feito, faz com que não se possa catalogar esta cena com qualquer outra palavra que não genialidade.
O Divino presente na vida de Jules Winfield em “Pulp Fiction”
Linha de Diálogo: A blasfémia do nome de Marsellus e o “Salmo Ezequiel 25:17”.
“Say what again”. Jules acende a fogueira e vai acrescentando achas àquela que é uma das mais agitadas conversas do filme. Aquele que se esperava ser, pelo menos por das partes envolvidas, um diálogo não muito conturbado, transforma-se no seu oposto.
A tumultuosa conversa faz sobressair o talento de Samuel L. Jackson. É dito pela sua personagem um dos melhores textos alguma vez escritos no cinema: o “Salmo Ezequiel 25:17”! A passagem divina que Jules declama não consta, na íntegra, no livro sagrado. Metade do monólogo foi sim criado pelo ator e por Quentin Tarantino.