Uma Série de Desgraças: Filme vs. Série

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Foi há precisamente treze anos que o cinema deu a conhecer “Uma Série de Desgraças”, no qual três órfãos eram perseguidos por um ator ganancioso. Agora foi a vez de a Netflix recriar as aventuras dos três irmãos, numa série que pretende adaptar mais fielmente os treze livros de Lemony Snicket. No entanto, qual das duas adaptações é superior?

“Uma Série de Desgraças” conta a história dos três irmãos Baudelaire – Violet, Klaus e Sunny -, que recebem a desagradável notícia de que os seus pais haviam perecido num incêndio que lhes tinha destruído a casa. Completamente desconsolados, os irmãos vão viver com o “parente mais próximo” (e neste caso, “próximo” significa que vive a apenas alguns quarteirões de distância), o Conde Olaf, um misterioso homem mas muito transparente quanto ao que pretende dos órfãos.

aseriesofunfortunateeventsbooks.jpgPublicada entre 1999 e 2006 pela mão de Daniel Handler (que usa o pseudónimo Lemony Snicket), a história está dividida em treze livros que contam as aventuras e desventuras dos três irmãos em vários locais, com diversos tutores e sempre se cruzando com o pérfido Conde Olaf, que não descansa enquanto não puser a mão na fortuna dos Baudelaire. Antes mesmo que a coleção estivesse completa, já saía no cinema uma adaptação da Paramount Pictures, com Jim Carrey no papel de Olaf, Jude Law como Lemony Snicket e Emily Browning, Liam Aiken e as gémeas Kara e Shelby Hoffman como Violet, Klaus e Sunny.

Foi exatamente na primeira sexta-feira 13 deste ano, que a Netflix estreou a primeira temporada, com oito episódios, numa história que pretende ser mais fiel aos livros. Esta versão conta com Neil Patrick Harris como o Conde Olaf, Patrick Warburton como Lemony Snicket e Malina Weissman, Louis Hynes e Presley Smith como Violet, Klaus e Sunny.

baudelairesnetflix.jpgAmbas as versões têm os seus altos e baixos, os seus bons e maus momentos, com performances que tanto agradam como desagradam. É por isso que iremos colocar filme e série frente-a-frente, analisar praticamente todos os elementos que os compõem e tentar ver qual é a versão superior.

Enredo

Nas duas versões, a história começa com os três irmãos a receber a desagradável notícia de que os pais morreram num incêndio. A partir daí, os órfãos são levados a viver com o pérfido Conde Olaf, um ator que vive numa mansão decrépita, completamente a cair de podre, e desde o primeiro dia os trata como os seus escravos pessoais, obrigando-os a fazer tarefas domésticas tais como limpar, cozinhar e lavar a roupa. Rapidamente os irmãos percebem os planos de Olaf quando este pretende, através de uma peça de teatro, casar-se com Violet e apoderar-se de uma vez por todas da enorme fortuna da família. Depois de o terem desmascarado, os irmãos são levados para um novo tutor, e Olaf promete persegui-los até ao fim do mundo, acabando por contribuir para a maior parte das desventuras dos Baudelaire.

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Tendo em conta que um se trata de um filme e o outro de uma série, é normal que a versão da Netflix apresente uma narrativa mais detalhada e envolvente, e o filme mostre uma história mais corrida. No entanto, quer um como outro conseguem ser fieis ao conteúdo inicial, fazendo uma introdução coerente com a história e apresentando as personagens principais de uma forma clara, pegando na descrição do narrador e complementando-a com elementos visuais. Porém, embora pareça que a narrativa de ambas as versões é linear, rapidamente nos apercebemos de que o filme, por não querer arriscar prometer uma continuação, vai acabar por tornar a narrativa mais apressada e conclusiva a partir do terceiro ato, acabando por reverter a situação dos irmãos na primeira meia hora.

olaf&baudelaires.jpgA série, por sua vez, leva o seu tempo. Com dois episódios para cada livro adaptado, a narrativa é bem mais calma, detalhada e coerente, começando aos poucos a ser menos linear à medida que vamos acompanhando os três irmãos nas diversas aventuras. Além disso, começamos a conhecer um pouco mais a família dos Baudelaire e o mistério em torno da morte dos pais, assim como acompanhamos outras personagens e conhecemos mais o passado de Olaf. É certo que, por motivos de tempo, o filme não conseguiria colocar todos esses elementos na narrativa mas, estendendo um pouco a duração, poderia dar margem de manobra para criar uma história mais interessante e convincente, e uma conclusão mais satisfatória.

Os irmãos Baudelaire

Comparar estas performances é como provar um vinho ao fim de alguns anos e apreciar o seu tom mais maduro e o seu sabor mais interessante. No tópico referente aos órfãos é exatamente esse o caso.

violetbaudelaire2004.jpgNo filme Violet é interpretada por Emily Browning, Klaus é interpretado por Liam Aiken e Sunny é representada por duas gémeas: Kara e Shelby Hoffman. Apesar de mais velhos do que os atores atuais (na altura em que o filme foi lançado), este grupo consegue ser charmoso; no entanto, os atores não conseguem ser memoráveis como personagens. Além de terem sido muito ofuscadas pelo marketing e performance de Jim Carrey como Conde Olaf, algumas modificações prejudicaram um pouco aquilo que as definia. As suas habilidades foram parcialmente postas de lado para dar lugar ao desenvolvimento do enredo.

Na série, é a vez de Malina Weissman vestir a pele de Violet, Louis Hynes apresenta-nos um Klaus mais inteligente e mais parecido com a personagem do livro, e Sunny é interpretada pela bebé Presley Smith, ao mesmo tempo que recebe a voz de Tara Strong. Aqui, não só os órfãos se apresentam com maior caráter, como têm a oportunidade de pôr as suas habilidades à prova para se salvarem.

klaus2003.jpgO maior contraste no filme está em Violet e Klaus. O segundo tem a sua habilidade da inteligência a merecer destaque durante todo o filme. Quase todas as ideias vêm dele: a ideia de desviar o comboio, a ideia de mandar a mensagem ao tio Monty com a cobra, a ideia de descodificar a mensagem da tia Josephine e, por fim, quem salva o dia é ele. Na série os três órfãos têm os seus momentos de ação usando as suas habilidades, especialmente Violet, que em várias ocasiões é a primeira a agir, visto que no livro ela vivia com a promessa que fez aos pais de proteger os irmãos.

klausnetflix.jpgPor falar nessa personagem, apesar de Emily Browning fazer um bom trabalho a dar vida à inventora que tem a mania de atar o cabelo, houve um momento que irritou muitos fãs do livro: perto do fim, tornou-se numa vítima ao desistir facilmente quando confrontada com o seu predicamento de ter de se casar com o Conde Olaf, e o truque que usou foi facilmente desmascarado pelo próprio. A Violet de Malina Weissman, pelo contrário, mostra necessidade de proteger os irmãos e uma preocupação quase maternal para com eles.

sunny.pngQuanto a Sunny, aqui devo atribuir o ponto ao filme. É certo que a Sunny na série corresponde melhor à personagem dentro da sua idade original; no entanto, a Sunny do filme conseguia ser mais natural. O que quer que tenham feito para a fazer reagir ou falar, resultou lindamente, fazendo com que ela parecesse uma bebé autêntica com pouco uso de CGI e uso da sua habilidade off-screen (algo que sem dúvida poupou em efeitos). Já a Sunny da série foi muito marcada pelo uso de CGI. Além das falas não serem dela, em muitas das situações em que ela usa os dentes nota-se em demasia o uso de CGI o que lhe tira a naturalidade nessas cenas.

Tio Monty, Tia Josephine e Mr. Poe

Em “Uma Série de Desgraças” há três tipos de adultos: os generosos, os desprezíveis e os estúpidos. Nesta lista serão abordadas três personagens que correspondem às três categorias pela respetiva ordem. São o tio Monty, a tia Josephine e o Mr. Poe.billyconnolymontgomery.jpg

Montgomery Montgomery no filme é interpretado por Billy Connoly. Na série é a vez de Aasif Mandiv. Em ambas as interpretações, os dois atores conseguiram apresentar-nos o único guardião generoso que os Baudelaires terão, assim como mostrar a sua ingenuidade e como esta acabaria por o levar a um desfecho injusto.

auntjosephine2004.jpgJosephine Anwhistle, neste caso, é um pouco diferente em ambas as interpretações. A personagem encarnada por Meryl Streep tem certamente as paranoias caricatas; no entanto, há uma gentileza que a caracteriza na sua linguagem corporal e tom de voz usado. A única coisa realmente desprezível que esta personagem fez foi ter entregue as crianças ao Conde Olaf quando viu que poderia não sobreviver ao lago.

alfrewoodardjosephine.pngAlfre Woodard faz com que a personagem seja merecedora do título de “desprezível”. A paranoia de Streep foi triplicada nesta personagem, assim como o seu egoísmo. Não só ela entrega os órfãos ao Conde Olaf, como os abandona sem aviso ao forjar o seu suicídio, e quando questionada sobre a sua conduta com os Baudelaire, a gramar nazi limita-se a corrigir a gramática na pergunta das crianças. Apesar de ter um momento de glória em que intimida o Conde Olaf, o seu destino na série permaneceu fiel ao livro.

toddfreemanpoe.png E eis que chegamos a uma das personagens que chega a ser mais odiada do que o Conde Olaf pelos fãs: o banqueiro Mr. Poe. No filme, é Timothy Spall quem o encarna, suavizando muitos dos aspetos que o tornavam repulsivo: tosse menos, mostra uma maior preocupação pelos órfãos, tem uma postura mais séria e é bem menos idiota quando comparado com o Poe de K. Todd Freeman. Aí está uma apresentação totalmente leal à personagem do livro que além de tossir constantemente, teima em não ouvir as palavras das crianças mesmo quando o Conde Olaf aparece disfarçado uma segunda vez. O facto de estar sempre a sorrir de certo modo torna esta personagem ainda mais insuportável e dá-nos vontade de chamar a Comissão de Proteção de Crianças e Jovens. E isso não é mau sinal: significa que Freeman conseguiu interpretar o banqueiro ignorante na perfeição.

Conde Olaf

Ao chegar a este tópico, imaginei-me numa escolha complicada: Jim Carrey ou Neil Patrick Harris? Qual dos dois representa melhor o vilão de “Uma Série de Desgraças”? Qual deles se destaca mais? A escolha parecia complicada, pois ambos são excelente atores que sabem como atrair a atenção da audiência e praticamente “roubar” o protagonismo sempre que estão em cena. No entanto, há um que peca pelo protagonismo em demasia e consegue, através da sua performance, arrecadar toda a atenção para si independentemente da cena que se trata, e esse é, claramente, Jim Carrey.

countolaf2004.jpgNo filme, Carrey era basicamente ele próprio como é na maior parte das comédias que protagonizou. Fosse em “Bruce, o Todo-Poderoso”, “A Máscara” ou “Ace Ventura”, Carrey sempre assumiu o controle como protagonista com a sua comédia memorável e única. Só que nesses filmes, o foco está em Carrey, uma vez que ele é a personagem principal. Em “Uma Série de Desgraças” ele é o vilão, o motor que faz a história andar para a frente e que coloca obstáculos no caminho dos três irmãos. Mas mesmo interpretando Olaf, Carrey consegue arrebatar todo o protagonismo para si, com o seu acting exagerado, acabando mesmo por levar a audiência a gostar mais dele do que dos três irmãos, por quem é suposto torcer. Jim Carrey pode ser um ator soberbo, mas conseguiu transformar o perverso e cruel Conde Olaf num vilão pouco intimidante e cómico.

olafneilpatrickharris.pngNeil Patrick Harris, aproxima-se mais daquilo que eu sempre imaginei como uma versão em carne e osso de Olaf. Fisicamente, parece-se muito mais com o vilão original, é mais perverso, mais sádico e, embora também ele seja bastante cómico, há sempre um espaço dedicado aos verdadeiros protagonistas da história. É certo que Neil consegue ter um acting quase tão exagerado como Carrey, e há muitos momentos de humor ao longo da temporada que nos fazem rir com a personagem (a canção sobre o Conde no primeiro episódio e o disfarce de Stefano e Cap. Sham são exemplos notórios), mas ao mesmo tempo quando o momento requer alguma tensão e seriedade, Olaf consegue ser ameaçador e odiável, e as provações por que faz os irmãos passar ao longo dos episódios fazem-nos torcer pelos Baudelaire e pela punição rápida do Conde. Ambas as performances mostram um ator claramente mais experiente na ação, mas Neil consegue encarnar com maior fidelidade um vilão muito mais complexo e verdadeiramente vil.

Lemony Snicket

No que toca ao autor da história, a decisão torna-se tão complicada como escolher o “melhor” Conde Olaf, visto que são duas abordagens muito diferentes. No entanto, ambas conseguem capturar a ideia da personagem que nos vai apresentando a ação da história.

lemonysnicket2004.jpg No filme, Lemony Snicket é uma silhueta misteriosa cuja voz pertence a Jude Law. Aqui, a personagem puxa pelo imaginário do espetador, da mesma forma que no livro. É uma personagem cujo aspeto e história são misteriosos e mantidos nas sombras. A voz de Jude Law acrescenta-lhe uma certa tranquilidade num cenário em que a maioria dos adultos são barulhentos. A sua ligação à história é visível; ainda assim, não se chega a saber ao certo qual é.

lemonysnicketnetflix.png Na série, é Patrick Warbuton quem o encarna e nota-se logo uma característica que o distingue da personagem que aparece no filme: vê-se um rosto, o que lhe dá logo uma identidade (ainda que incerta), e parte do mistério que o envolve perde-se. Porém, não significa que não existam fatores positivos a apontar. A sua omnipresença à medida que a ação se desenrola, não só torna a narrativa e o ritmo da história originais, como ainda relembra os momentos no livro em que o narrador acrescenta os seus comentários durante a história. As pistas da sua ligação à história são muito mais fortes, nomeadamente a sua relação passada com o antagonista.

São performances muito diferentes que, no entanto, conseguem retratar Lemony Snicket, seja ele misterioso ou omnipresente.

Adaptabilidade

Adaptar uma história para um meio de comunicação visual nem sempre permite que toda a mensagem da história original transpareça para o filme ou série. No caso de “A Series of Unfortunate Events” não há dúvidas de que a complexidade que a história vai ganhando leva a que a série seja a melhor opção para adaptar a história de forma fiel.

baudelairesbooks.jpgToda a história se compõe em 13 livros, nos quais a complexidade e desenvolvimento das personagens vai ganhando qualidade e relevância à medida que o enredo avança. Com apenas uma temporada, a série da Netflix provou que não só consegue mostrar toda a história, como ainda aprofunda aspetos que não foram muito explorados no livro. Alguns mistérios começam a revelar-se aos poucos, há personagens que têm uma backstory (Dra. Orwell) ou um maior destaque (A Mrs. Poe). As séries de televisão conseguem criar uma maior ligação com a audiência pelo extensão da duração. Apesar do orçamento tendencialmente mais reduzido, a escolha da série foi a acertada para este caso.

baudelairesnetflix.pngNo caso do filme, não vou dizer que é mau, longe disso. Deu um destaque exagerado a Jim Carrey nas publicidades feitas, e torna-se num filme que se pode bem ver num serão em família. Contudo, como em todas as adaptações de livros para o grande ecrã, o tempo é fator crucial. No caso do filme, pegaram nos três primeiros livros, tiraram os finais do segundo e terceiro livro (assim como muitos outros elementos que mostravam os órfãos a agir perante provações) e passaram o final do primeiro livro para o final do filme, mesmo esse com alterações drásticas. Conseguiu captar o essencial da história, mas apostou muito pouco em desenvolvimento de personagens quando comparado com esta adaptação.

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Apesar de ambas as adaptações merecerem a sua dose de apreço por parte de fãs (e não só), é a série que sem dúvida consegue ser 110% leal à história, chegando até a ser superior aos livros nos quais se baseia.

Conclusão

Ambas as versões têm os seus altos e baixos, mas é sensato dizer que a série, mesmo contendo um orçamento muito mais reduzido em comparação com o filme, consegue ultrapassar em muito a sua contraparte de 2004. No entanto, não se quer com isto dizer que a longa-metragem seja digna de desprezo, muito pelo contrário. A performance de Jim Carrey é soberba e hilariante, e muita gente na secção de comentários da série na página da Netflix acaba por colocar o filme à frente da série principalmente devido ao carisma do Carrey. Porém, devemos lembrar-nos que não é o Conde Olaf que devemos apoiar, mas sim os três irmãos, e o filme consegue fazer exatamente o contrário.

A série, por sua vez, apresenta um equilíbrio muito agradável entre enredo, personagens e adaptabilidade ao material original, que leva a que os já fãs dos livros fiquem deliciados com tal fidelidade. Mais uma vez, a Netflix está de parabéns por investir de forma certa numa série e entregar aos fãs aquilo que eles querem, sem fazer desvios exagerados e dando destaque a quem o merece na altura de o merecer. Por enquanto, apenas tivemos oportunidade de ver os quatro primeiros livros adaptados, mas caso a Netflix continue com o bom trabalho, poderemos ver um futuro brilhante nas próximas temporadas.

Texto escrito por: Tiago Filipe Costa e Sara Sampaio.

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