A Favorita – Uma maravilhosa tempestade

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A natureza fora da caixa de alguma obra de arte é demonstrativa não só da eventual (boa ou má) vontade do público, mas também um eficiente catalisador da sua paciência. Se as pessoas se entediaram assim tanto com “A Lagosta” ou com “O Sacrifício de Um Cervo Sagrado”, Yorgos Lanthimos oferece uma história mais ajustável ao cenário americano ou inglês, mas com o cuidado visual e tecnicamente autoral que o definem como um dos mais criativos criadores do cinema contemporâneo.

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Sim, que se provoque o pretensiosismo de alguns cineastas (comerciais ou não), mas atentando ao seguinte: se os estúdios de Hollywood cada vez mais são atraídos pelo sucesso esmagador de determinados géneros, prosseguindo com universos de sequelas, prequelas, reboots retroativos ou readaptações modernas, será constantemente necessário que venham do outro lado do Atlântico as mentes mais negras e capacitadas de orquestrar os mais belos palcos de talento na Sétima Arte. Juntamente com o francês Olivier Assayas, o alemão Fatih Akin e o dinamarquês Nicolas Winding Refn, o grego Yorgos Lanthimos é uma das caras mais potencialmente destacadas na lista de realizadores de topo. Num ano lembrado pela paragem da minha habitual ida de final de semana ao cinema, a mente por detrás da sátira romântica mais cerebral de 2015 e do thriller mais moralmente pesado de 2017, a oferta episódica de frieza é “A Favorita”.

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No entanto, se nos passados dois projetos, a intenção era a de destacar a apatia e crueldade humana, elevando constantemente a falta de emoção dos personagens e dos próprios elencos, no primeiro period piece do realizador, os olhos estão virados para a ascensão hierárquica e para a calculista, oportunista, vingativa, estonteante, desconcertante, desconfortante e irracional busca por poder. Num dos melhores filmes históricos (com as devidas alterações para o bem da ficção) representativos do empoderamento feminino da sua época (ao lado de “O Estranho Que Nós Amamos”, da Sofia Coppola), o feroz trio principal brilha como nenhum outro do mesmo ano, tornando Yorgos Lanthimos numa das mais acertadas escolhas para o Óscar de Melhor Realização.

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Sim, diga-se (de preferência, não de passagem) que o realizador (desta vez, operando com o magnífico texto original de Tony McNamara e da estreante Deborah Davis, repleto de elegância, falsos elogios e uma malícia autoritária característica da boca de qualquer personagem) é um notável (e enorme) admirador do Stanley Kubrick. Aliás, quem não? Foram longos, luminosos e fúnebres os planos sequência pelo opaco hospital do protagonista do thriller injustamente esquecido de 2017.

Contudo, a oferta aqui é uma das mais poderosas construções de corte dos últimos anos, numa altura em que, tal como os westerns, as histórias “verdadeiramente” antepassadas parecem já ter perdido o seu tempo. Ressuscitando elementos visuais de “Barry Lyndon”, de 1975, o esforço técnico já seria louvável por si só. O preenchimento do espaço é de bradar, a fotografia reluzente nos jardins ingleses auxilia a atmosfera de grandeza, compensando com os solitários pontos de vista na escuridão combatida pelo minimalista trabalho de iluminação (muitas vezes recorrendo à contraluz), terminando com as máximas notas do guarda-roupa e design de produção. Todavia, ansioso não seria o cinéfilo que não esperasse mais do cineasta de 45 anos.

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A banda sonora trata-se de uma fusão da mais extravagante sinfonia do século XVIII com as mais incómodas, inquietantes, agudas, brutais e versáteis partículas sonoras exteriores, recolhidas cuidadosamente ao longo de todo o design sonoro, produzindo, assim uma das mais fantásticas coesões sensoriais. E o trabalho de câmara é, sem qualquer sombra de dúvida, um orgasmo visual. A presença assídua dos planos abertos em sequência, contínuos zooms in em busca do plano médio com dois personagens, optando regularmente por um ágil movimento horizontal, pela desconcertante sobreposição de planos, por iminentes contre-plongées e repentinos close-ups e pelo vágado provocado pela lente fisheye (estilo go pro, talvez de novo exercendo inspirações helenísticas).

Por outras palavras, quem quer ir ao cinema ver porrada, gajas e carros vai-se entediar. Quem quer reencontrar mais uma de enésimas vezes cinema bem feito, receberá um prato cheio. E demasiado curto, por sinal. Ou diria que não, pois aquilo que distancia “A Favorita” de uma autêntica obra-prima é a ligeira quebra de ritmo a partir de uma determinada reviravolta chocante, digamos. Tudo é jogado na nossa cara assim que o filme começa e que todos os capítulos são cuidadosamente enumerados, por isso, deixar aquela atmosfera dançante de provocações e constantes ameaças verbais e físicas amolecer foi o único ponto fraco do filme.

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Mas o que seria de uma mestria destas sem um elenco (também ele) dos favoritos do ano? A Olivia Colman está assustadora, raivosa, sensacional. A Rainha Ana é uma fascinante personalidade de extravagância e depressão, ora caindo para a ácida autoridade, ora para a instabilidade, ora para a perseverança dos seus sentidos e poderes, ora para o desmoronamento emocional, ora para o silencioso controlo, ora de regresso à alienação. De todos os seus maravilhosos momentos (dentro da apresentação degradável, fraca e vulnerável da personagem), uma longa cena em particular é genuinamente perturbadora. A Rachel Weisz está deliciosamente provocadora, manipuladora, altiva e crescentemente ameaçadora. E a Emma Stone (com um charmoso e direitinho sotaque inglês) surge de maneira inocente, descuidada e hierarquicamente insignificante, progredindo para uma extrema ascensão, soberania, potestade, imprevisibilidade, comicidade e arrogância.

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Muita coisa me ensinou “Breaking Bad” no que toca à toxicidade masculina atual e à vasta lista de razões que “obrigam” os homens quase universalmente a se aventurarem em interesseiras e utilitárias lutas por poder. A verdade é que esses elementos (políticos, financeiros, sexuais, religiosos ou sociais) estão bem presentes aqui, sobretudo debaixo das preocupações falhadas do pacato James Smith e das ridículas peruca e maquilhagem do ácido e oportunista Nicholas Hoult (regressando ao apogeu da carreira, como aconteceu em “Um Homem Singular” e “Mad Max: Estrada da Fúria”).

O que diverge aqui dos habituais filmes protagonizados por figuras femininas cuja emancipação é enclausurada por homens sedutores e inflexíveis, “A Favorita” oferece-nos um hilariante palco de exorcismo de todos os patéticos defeitos dos descendentes de Adão, desde a ilusória dominação sexual, a imaturidade política, o falso dom da oratória e, não menos importante, o desrespeito pela mulher. E a equação mais infantil é o personagem do Joe Alwyn, um ótimo alívio cómico. Talvez o Yorgos Lanthimos estivesse apenas a querer tirar alguns risos ao realizar descomposturas das fortes presenças masculinas nesta história, mas é argumentável afirmar que uma tese foi comprometidamente defendida.

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