Devs | As difíceis escolhas de Lily e Alex Garland

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“Devs”, a estreia de Alex Garland em televisão, surgiu discretamente na “antena” da HBO em março deste ano. São oito episódios de 1 hora realizados e escritos pelo sedutor autor de outros relevantes títulos de ficção científica que apesar da relevância permanecem guardados no recanto da estranheza.

Depois das dificuldades pelas quais Garland passou com a produção e distribuição de “Ex_Machina” e “Aniquilação”, foi para ele uma lufada de ar fresco ter liberdade criativa total e mais tempo para contar a sua história, longe das limitações habituais.

Em “Devs”, série da Hulu e FX, que em Portugal está em exibição na HBO, Alex Garland revisita muitos dos seus recorrentes temas sem com isso regressar propriamente aos ambientes e temas dos seus filmes. São, no fundo, as mesmas perguntas com formato diferenciado.

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“Devs” chegou com inúmeras camadas de entendimento e se, num primeiro nível, aparenta alguma superficialidade e desprendimento, é preciso insistir e ficar com a série para aprender a respirar com ela, algo a que Garland sempre convidou o espetador a fazer.

Na série, o realizador, escritor e argumentista, foca a existência de uma gigante tecnológica sedeada em Silicon Valley, São Francisco, chamada Amaya, que se dedica ao desenvolvimento de ferramentas tecnológicas de manipulação e gestão de dados.

Como em tudo o que Alex Garland toca, Amaya chega até ao espetador inicialmente como um prodígio tecnológico, mas rapidamente se percebe que não tem apenas um lado bom e que o perverso está já inteligentemente instalado nos meandros da política local.

Os personagens principais são Lily e Sergei, um casal que trabalha em desenvolvimento tecnológico e que acaba a trabalhar na Amaya, a empresa de Forest (Nick Offerman) e Katie (Alison Pill). Lily é interpretada pela musa de Garland, Sonoya Mizuno (presente tanto em “Ex_Machina” como “Aniquilação”, onde interpretou a humanoide que clona a aparência da personagem de Natalie Portman) e Sergei por Karl Glusman.

Sergei vai rapidamente ser sugado para o interior do vórtex complexo de Amaya e Lily acaba por descobrir ao longo de um enorme e imbricado périplo investigativo a natureza dos eventos que levaram ao desaparecimento misterioso do seu namorado.

O mistério que a minissérie constrói no decorrer dos seus 8 episódios é um dos seus grandes pontos fortes, mas enquanto mantém esse mistério consegue prender o espetador, enquanto que os seus derradeiros momentos relevam demasiados segredos, ficando a sensação de que teria sido preferível manter um final mais aberto.

“Devs” deixa, contudo, muitas das perguntas que faz em aberto, por isso o final da série entra em contradição com todo o ambiente nebuloso que criou ao longo de todo o seu percurso e parece desejar demasiado responder a perguntas para as quais não precisa de ter respostas.

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Um dos seus pontos fracos reside na sua heroína Lily, interpretada pela mística Sonoya Mizuno, que apesar de inteiramente devotada a descobrir a verdadeira natureza de Amaya e do projeto Devs, nem sempre surge com o caráter ou personalidade vincados que o seu personagem exige.

A sua falta de convicção é perfeita na manutenção do ambiente assético da série, mas nos momentos cruciais precisava de maior resolução e personalidade, que não existe e contrasta com as grandes interpretações do restante elenco que em vez de ser um suporte acaba por tomar um lugar de maior centralidade.

Apesar de alguns elementos não funcionarem na totalidade, é uma belíssima peça de arte cinematográfica, a espaços aterrorizadora, mas de um modo tão subtil que é possível que só mais tarde o espetador se aperceba de que assim é.

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Não terá sido por acaso que Alex Garland tenha escolhido Rob Hardy para seu diretor de fotografia, o mesmo que o acompanhou em “Ex_Machina” e “Aniquilação” e com quem partilha uma imensa afinidade artística. A sua marca está claramente por toda a parte em “Devs” e ainda bem que sim, porque é o seu trabalho que permite estabelecer o ambiente tenso da série.

A minissérie coloca constantemente questões, aí residindo a sua enorme atratividade e desafio, não parando de as colocar quando chega ao seu desfecho. Perguntas que ficam sem resposta porque se prendem com a complexidade do ser humano, apesar de os personagens de Alex Garland aparentarem estar muito longe daquilo que é um ser humano.

Um dos pontos fortes é essa bela aparência e o facto de o espetador ter de desvendar a sua mensagem no meio de inúmeras pistas falsas. A beleza visual é um inteligente engodo que confere a “Devs” a aparência de leveza e vazio existencial que, na realidade, é apenas uma das suas facetas.

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Constantemente pergunta, quase angustiada, se são as pessoas intrinsecamente malévolas, se os meios justificam os fins e se os fins podem justificar o sofrimento provocado, mas esse desespero pelas respostas é nada mais que uma chamada de atenção para que se pense nelas, mais do que chegar a uma conclusão.

Ainda no seguimento dos temas lançados em ““Ex-Machina” e “Aniquilação”, “Devs” volta a centrar-se no determinismo das ações humanas e na existência ou não de livre-arbítrio, colocando no centro da ação um supercomputador que é usado para espreitar os grandes momentos do passado, mas no futuro é usado apenas para fins perfeita e estritamente pessoais/emocionais.

Forest, o génio por detrás de Amaya, é ao mesmo tempo genial e pérfido, não é o altruísmo que o move, como se perceberá à medida que a sua história pessoal é desenvolvida e desvendada. Em muitos momentos, Forest surge como elemento vingativo e perfeitamente racional, desligado do sofrimento que inflige nas pessoas mais próximas.

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Forest é o criador, ironicamente enquadrado pelo halo das luzes circulares à entrada do seu laboratório fortaleza em Amaya e é essa vertente de fé e emoção que confere a “Devs” uma dimensão completamente nova depois de se retirar as camadas superficiais.

É que, na realidade, a minissérie deambula sobretudo em torno dessa figura mística, criadora, única, a primeira, geradora de tudo o que veio a seguir. Em última instância, apesar da sua ciência, é na crença que reside o grande cerne do seu sofrimento, do sofrimento de um homem que procura nas máquinas a cura para as feridas do passado.

No final, o espetador pode ficar surpreendido por perceber que não sabe muito bem o que decidir pensar sobre Forest e a sua grande empresa, misto de terror e beleza, de ciência, emoção e radicalidade filosófica. Amaya, a filha de Forest, surge sempre aterradora, de olhar fixo, paralisada sobre a empresa, a estátua gigantesca erguida mais como aviso ou lembrança do que como homenagem.

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“Devs” pergunta a quem a observa se o criador é intrinsecamente bom ou mau, lançando para a mesa das opções as suas ações reprováveis e deixando a dúvida: é possível saber se alguém é apenas bom ou mau?

Por todas as razões apontadas, é uma das mais surpreendentes séries estreadas este ano, um colosso discreto que veio para inquietar mentes esquecidas ou para relembrar as inquietas que ainda há muito para fazer. No final, o espetador fica com material suficiente para pensar muito para lá da série, que deixa um misto de amargo de boca e espanto quando acaba.

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Se o livre-arbítrio é um dos seus elementos-chave, “Devs” preocupa-se ainda em grande medida com outras variáveis, introduzidas muito para lá da primeira metade da série, como a fusão do tempo ou a obliteração das linhas temporais.

O espetador poderá questionar-se em que tempo vivem aqueles personagens, se aquela realidade é sólida ou uma ilusão, se a escolhas já foram feitas ou não, se a realidade não é mais que uma simulação ou em quantos mundos o ser humano se move (na possibilidade de mundos paralelos ou multiversos).

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A complexidade cresce à medida que se aproxima do fim, mas apesar de parecer revelar uma grande resposta, aventa mais hipóteses do que avança respostas.

“Devs” é ainda uma subtil maneira de Alex Garland repensar o caminho através do qual desenhou “Aniquilação”, tendo sido criticado na altura pela sua escolha de atriz principal quando a personagem no livro é de ascendência asiática. Aqui, Garland pegou em Sonoya para atriz principal e respondeu à preocupação que a própria atriz partilhou com o realizador relativamente à representatividade da comunidade asiática no cinema e na televisão.

Garland trouxe ainda mais diversidade ao elenco, apesar de manter a sua imagem de marca de limpeza e assexualidade, sobretudo nas personagens femininas, mesmo não querendo ser chamado para a discussão acerca da representatividade transgénero.

Essa discussão surgiu pontualmente com a escolha de Cailee Spaeny para a interpretação de Lyndon, uma das mais interessante e complexas personagens da série, que biologicamente é um jovem rapaz interpretado por uma jovem e promissora atriz.

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Independentemente da escolha, muito acertada e das questões que a envolvem, não deixa de ser interessante que as mulheres de Garland não têm, também em “Devs”, uma personalidade intrínseca e biologicamente feminina, conferindo à série um ambiente asséptico, mas também ascético, filosófico, espiritual, muito para lá das definições tradicionais de género, de tempo, de fisicalidade.

É muito mais que uma série sobre máquinas a quebrar barreiras, é definitivamente sobre pessoas e as escolhas que escondem uma miríade de sentimentos complexos que inicialmente parecem ausentes.

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Por detrás da aparência, residem as mesmas preocupações, a mesma busca pela cura, as mesmas tentativas de tocar numa qualquer espécie de felicidade cuja forma tende a mudar à mesma velocidade que a tecnologia.

“Devs” pergunta-se e pergunta a quem a vê, mas não quer que se responda, quer encetar uma conversa, uma discussão, e essa é garantida muito para lá do final da série, que deixa uma sensação de orfandade prolongada, mesmo depois de a série ter sido vista há muitos meses.

Todos os episódios estão disponíveis na HBO Portugal.

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