Godzilla – Uma reles dimensão

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Os paraquedistas saltam. Lá em baixo, decorre um dos mais horrendos cenários de destruição imagináveis.

Criaturas incompreensivelmente monstruosas confrontam-se em São Francisco, dizimando as pequenas amostras da obra civilizacional evidentes das nossas pegadas, como autênticas crianças a quebrar legos. Mais do que qualquer dever patriota, os militares conservam uma vontade de fugir para casa. Agarram-se à missão, no entanto, procurando um veloz refúgio para voltarem as ver os filhos e esposas, fora de um hospital ou dos eventuais escombros, de preferência. Com eles, são as pesadas respirações e os sinalizadores rastros de fumo vermelho que destacam uma histórica e interminável hostil usurpação – a nossa existência –, deixando mais uma cicatriz proveniente da passagem do ser humano na Terra, danificada injusta e injustificavelmente pelos nossos pecados.

Godzilla

Em 2014, larga foi a percentagem da bilheteira da segunda longa-metragem do inglês Gareth Edwards que se sentiu descontente após assistir ao blockbuster que prometia a melhor representação do Rei dos Monstros no cinema. Este que nasceu em 1954, na lente de Ishirô Honda, com o título original “Gojira” (em Portugal, “O Monstro do Oceano Pacífico”), intencionalmente metaforizando o holocausto nuclear na perspetiva dos japoneses, quase 10 após os bombardeamentos de Hiroshima e Nagasaki, numa posição de denúncia não só da devastadora capacidade tecnológica adquirida na Segunda Guerra Mundial, mas também dos limites da Humanidade, que sofreria ferozmente a sede vingativa da Natureza, encarnada na forma mais animalesca, devastadora e agressiva.

O patriotismo americano é posto em causa indiretamente, através da expressão do rosto de japoneses que regressaram do conflito internacional e que escaparam aos ataques dos cogumelos atómicos. Mas nada valeu a pena. A raça mais perigosa da História pagaria pelos seus males e enfrentaria uma inevitável ira.

Godzilla

Mantendo a mesma filosofia na sua obra, Gareth Edwards não queria publicitar “Godzilla” como um filme de monstros. Partindo, todavia, de inspirações como “Tubarão”, “Encontros Imediatos do 3º Grau”“Parque Jurássico”, de Steven Spielberg, e “Alien – O 8º Passageiro”, de Ridley Scott, o propósito era elaborar uma história que censurasse as perigosas divergências orgulhosamente carregadas pelos Estados Unidos, que os põem à margem da sensatez de terceiros e de uma adequada conduta político-militar.

Isto é: Desrespeito para com a cultura de outrem (impressora da falta de disciplina existente nas jovens gerações, quando comparada à rígida e assertiva educação japonesa); o oportunismo escusadamente intervencionista numa guerrilha ou investigação científica fora do habitat natural; o cobrimento de acidentes e seguintes mentiras; a prioridade de salvamento da arma nuclear ao invés do derrotado soldado empoeirado; uma desordem praticamente anárquica nas estradas semelhante a um rio de formigas; a amedrontada falta de noção traduzida num ataque irrefletido; o facilitismo e esperteza dos órgãos executivos da lei (three birds, one stone) e uma alarmante imprevisibilidade.

Eu quero falar com alguém encarregado. Vocês não enganam ninguém quando dizem que o que aconteceu foi um desastre natural. Vocês estão a mentir! Não foi um terramoto. Não foi um tufão. Porque o que realmente se passa aqui é que vocês estão a esconder algo. E vai-nos mandar de volta para a Idade da Pedra!

Godzilla

Mas não podemos dizer que “Godzilla” se trata de uma direta crítica ao americanismo contemporâneo e a todos os podres que elevam a atualidade ocidental diariamente. Com certeza que, a par da destruição que o Ser Humano provoca à Mãe Natureza, o elemento mais notável do filme é dissecação da nossa inconsequente e insignificante posição na mesma. O que acontece aqui, numa das muitas inversões das cartas disponíveis na mesa (colocadas a jeito da possível execução de uma réplica da péssima oferta cinematográfica de 1998), “Godzilla” é uma subtil observação do impacto nulo do Homem num ecossistema diverso, gigantesco e assustadoramente processual, superando-se ao longo do tempo e vilipendiando (com razão) a fornecida pequenez ao seu vírus, que jamais se retira. Posto isto, o papel do implacável monstro foi uma grata surpresa.

Nos passados 60 anos, dezenas foram as repetições da história que todos conhecíamos – a de uma besta a destruir cidades até à sua previsível derrota. Desta vez, estabelecidas as intenções dos desconhecidos MUTOs, o papel do kaiju (“besta estranha”, em japonês) mais importante da mitologia moderna do país dos animes é corretamente invertido, transformando a anedota de si mesmo numa criatura quase messiânica e independente dos seus criadores, que jamais ataca a pobre e ridícula raça humana, a não ser quando esta comete o terrível erro de se meter no seu caminho, como aconteceu na outrora erguida ponte (onde acabara há segundos de defender os autocarros escolares dos iminentes mísseis da incompetência militar).

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O gigante dinossauro conhecido por comer prédios em manhãs livres torna-se num inesperado (ou indesejado) símbolo de esperança, digamos precipitadamente num mártir, quando todos o pensaram jazido depois da monstruosa demonstração das suas habilidades. Mas não, o lagarto de minúsculos braços e poderes criativamente radioativos lentamente levanta-se, caminhando debaixo dos helicópteros e mergulhando de volta para o profundo pacífico, mantendo uma distância entre os minúsculos hóspedes, soltando mais um de imensos explosivos rugidos, cumprida a missão.

Godzilla

A arrogância dos homens é pensar que a Natureza está no seu controlo. E não o contrário.

No entanto, por muito que “Godzilla” não seja mais de um de milhares de blockbusters perfunctórios, quem comprou bilhete em 2014 tinha razão num aspeto – maior podia ter sido a carga emocional, provinda da grande (e excelente) lista de atores presentes. O inglês Aaron Taylor-Johnson encontrou-se praticamente isento de expressão ou sentimentos (ao contrário do que aconteceu em “Kick-Ass” e, nos anos seguintes, em “Avengers: A Era de Ultron” e “Animais Noturnos”). A sensação que dá é que lhe foi pedido o frio arquétipo de um Dwayne Johnson com menos músculos e frases de efeito. Até tentaram imprimir empatia com o personagem através daquela aleatória e chata preocupação que este carrega com o perdido miúdo japonês no metro.

É verdade que, também à luz de uma competente, carinhosa e preocupada presença da Elizabeth Olsen, o ator não tenta ser o típico herói americano em filmes de desastre como os de Roland Emmerich ou do Michael Bay. No entanto, o desenvolvimento de afeto torna-se difícil, sobretudo em momentos em que o jovem adulto deveria revelar um armazenamento longínquo de dor e saudade. Felizmente, dada a saudável desnecessidade de diálogos no terceiro ato (face à extensa, ainda que adequada, inicial carga de exposição), o arco do personagem torna-se mais significativo e profundo, procurando achar uma relação entre ele (ou qualquer outro homem) e o monstro desconhecido que passeia por São Francisco.

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O Bryan Cranston, bem pelo contrário, vende perfeitamente o desespero, revolta, alienação e a busca por verdade e preenchimento na sua investigação de mais de uma década, alimentando a vontade do espectador de o ver a suceder. A Juliette Binoche é outra peça do elenco que caiu fundamentalmente em desuso, mas que conseguiu dar impacto ao reduzido tempo em cena, consequentemente marcando a sua ausência.

O Ken Watanabe foi a escolha óbvia para o papel, revelado eventuais respeito e dedicação ao personagem. Pode-se considerar curiosamente que o Dr. Ishiro Serizawa (cujo nome homenageia precisamente o pai do conhecido monstro no cinema), portador de um relógio da Segunda Guerra Mundial e de uma notável admiração pela criatura em causa, é o verdadeiro protagonista do filme de 2014, estando mais que apto para representar a sua parte de novo na sequela de 2019. Acompanhado pela Sally Hawkins que, para a minha infelicidade, não faz absolutamente nada senão decorar o guião e “despejar matéria”. Podia-se fazer tanta coisa com esta dupla improvável, mas nem é dada a mínima personalidade ao potencial da atriz.

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Curiosamente, quem devidamente acompanha Ken Watanabe é o David Strathairn, o almirante que, ao contrário do que se podia esperar, não divide um desconfortável duelo com o ator japonês. Muitas são as histórias de desastre no cinema liderados por constantes provocações entre o militar bronco da vez e o cientista romântico. O que ocorre aqui, por oposição, é um interessantíssimo e pacato choque de valores, no qual aqueles que prevalecem são os educados e sábios, numa calada e solitária aguarda pela queda das frágeis convicções adversárias.

Como se pode verificar, muito merecedora é a filosofia de “Godzilla” de reflexões acima das habituais do próprio género cinematográfico. Contudo, a mestria técnica e visual foi pouco valorizada nos últimos 5 anos, contrariamente ao que se esperaria. Sim, porque, por acaso, os efeitos visuais são qualquer coisa de sensacional, auxiliados por um (literalmente) estrondoso design sonoro e uma banda sonora majestosamente fúnebre do Alexandre Desplat (num ano marcado pelo seu premiado trabalho em “The Grand Budapest Hotel” e “O Jogo da Imitação”). A fotografia exerce um papel similarmente arrebatador, contudo com a ligeira alteração na última cena. Se, praticamente durante toda a história, o cenário é o de um palco com todos os requisitos para um eventual apocalipse inconfrontável, o despertar do Rei dos Monstros imprime um ligeiro ânimo e senso de vitória àquele trágico amanhecer, ainda que longe da nossa autoria.

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