“Linha Fantasma”, o último trabalho do Daniel Day-Lewis, já chegou a Portugal. Falaremos sobre “Haverá Sangue”, que fez 10 anos e é o melhor filme do ator. Atenção: Este texto contem SPOILERS!
Baseado no livro Petróleo!, de Upton Sinclair, publicado em 1926, “Haverá Sangue” começa em 1898 e segue Daniel Plainview, um pequeno, porém ascendente “homem do petróleo”, na sua tentativa de perfurar os terrenos de uma cidade pacata de Little Boston.
O filme foi escrito e realizado pelo Paul Thomas Anderson, responsável pelos ótimos “Magnolia”, de 1999, “Vício Intrínseco”, de 2014, e do próprio “Linha Fantasma”. Ele é, e sempre foi, um dos realizadores mais originais e distintos dos últimos anos, sendo ainda assim surpreendentemente um dos mais subvalorizados. Melancolia, depressão, escuridão, solidão, remorsos e tensão são os elementos mais presentes em toda a sua filmografia. “Haverá Sangue”, em particular, não é um filme para todos. É uma daquelas obras-primas difíceis de recomendar, devido à sua dureza temática e realidade brutal do comentário sobre o capitalismo.
Esteticamente falando, este é um dos melhores filmes do realizador americano. O cuidado narrativo é constantemente auxiliado pelos planos pacientes e detalhados. Planos sequência, panorâmicas sobre a vasta paisagem deserta, close-ups e, claro, alguns plongées espantosos das erupções de petróleo. A fotografia do Robert Elswit é deslumbrante. Somos transportados para uma atmosfera seca, suja, calorosa e cruel.
A banda sonora complementa essa atmosfera como se de um filme de terror se tratasse. A cena da primeira erupção de petróleo não seria a mesma sem aquela percussão repetitiva e desconcertante. Toda a música do Jonny Greenwood é sensacional, quer nos momentos de tensão, quer nos momentos de maior abalo emocional. No entanto, a ausência de música é igualmente impactante, a cena da igreja é um exemplo perfeito, mas já falamos dela.
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“Haverá Sangue” é um filme simbólico. No início, aborda o sonho americano. Faz comparações do petróleo ao sangue de Cristo e do protagonista moralmente questionável a uma figura sagrada. Mas, no fundo da sua crueza, é um filme sobre a colisão da Revolução Industrial do Século XX e o pensamento religioso fanático e retrógrado de uma aldeia pouco aberta a mudanças. A evolução de uma sociedade é inevitável. Face às personalidades ambiciosas e sedentas por poder e dinheiro, haverá sempre aquelas que, na teoria, defendem a humildade e a reserva financeira, enquanto lutam desesperadamente por poder.
As interações agressivas do Daniel com o padre Eli são o retrato exemplar. O Daniel é ateu e cínico. Eli adota diariamente a identidade de um padre ambicioso por influência, contra a ideologia que segue. Ao pé das velhinhas pobres de espírito, este finge curar milagrosamente doenças através de um suposto ritual bastante duvidoso, antes de ameaçar o Daniel com constantes abordagens sobre dinheiro. A rivalidade tóxica destes dois define o filme e é impossível não desenvolver um ódio pelos dois. Sim, porque nenhum deles é santo.
A competição está-me no sangue. Não quero que mais ninguém tenha sucesso. Odeio maior parte das pessoas.
Para quê esse ar de miserável? Temos um oceano de petróleo debaixo dos nossos pés!
O Daniel Day-Lewis deu performances extraordinárias em toda a sua carreira, mas encontra-se na sua melhor forma precisamente aqui. O Daniel Plainview é um homem aparentemente educado, religioso, atencioso e amigável. Na verdade, nada mais é que um trabalhador irracionalmente ambicioso e destrutivo. Ainda hoje permanecem diversas dúvidas sobre as suas reais intenções e afetos devido à sensacional interpretação do ator. Ele gostava mesmo do filho? Ele arrependeu-se de o ter abandonado? Será ele assim tão insensível e violento? Ou será essa apenas mais uma máscara? Na verdade, é um homem com uma fascinante capacidade de manipulação. E sim, o seu filho é somente uma cara bonita para acordar tudo aquilo que quiser. Mas ao longo de tantos anos, foi-lhe impossível não desenvolver um afeto por ele. No entanto, perante a surdez inesperada e a ambição crescente do H. W., já não lhe foi possível controlar as vontades ou os interesses do filho adotivo.
O Paul Dano deu uma performance certamente muito subvalorizada aqui. Depois de Swiss Army Man, do ano passado, este papel é claramente o que o melhor define como um ator versátil. Ele representa todo o pensamento hipócrita de um padre desrespeitoso para os seguidores “cegos”. A cena da igreja é o melhor exemplo da rivalidade dos dois personagens. O protagonista odeia-o de morte, mas, apesar de aceitar passar por aquela humilhação e “batismo”, consegue aquilo que quer: limpar a sua imagem, fingindo-se novamente de um crente e construir o seu tão desejado oleoduto.
Eu bebo o teu batido! Eu bebo-o todo! / Não me trates mal, Daniel!
Quando os dois se reencontram 16 anos depois, a sensação é no mínimo agridoce. De um lado, Eli é falso, malicioso e vive em constante negação com a sua profissão. Do outro lado, Daniel está nojento, velho, impiedoso e enraivecido como nunca. É o confronto de uma vida!
“Haverá Sangue” é um filme maldoso, infernal (literalmente), cínico, simbólico e brutalmente realista sobre a ainda presente colisão entre o avanço tecnológico e a Igreja. É um estudo de personagem como nenhum outro e o melhor trabalho que o Daniel Day-Lewis fez na carreira, o que não é dizer pouca coisa. Que “Linha Fantasma” seja bom. Vamos ter saudades, Day-Lewis!