A artista polaca Dorota Kobiela e o seu marido vencedor de um Óscar Hugh Welchman estiveram à conversa com o Cinema Pla’net sobre “A Paixão de Van Gogh”.
Primeiro filme do mundo totalmente pintado à mão, com cada um dos seus 65 mil frames a corresponder a uma pintura a óleo ao estilo de Van Gogh, “A Paixão de Van Gogh” é de uma proeza artística quase sem precentes. O Cinema Pla’net teve direito a uma conversa em exclusivo com a dupla de realizadores, durante a apresentação do filme em Portugal na Sociedade Nacional de Belas Artes, num evento que teve ainda direito a uma pintura ao vivo da autoria de Mariana Sampaio e uma interpretação gastronómica pelo chef Ricardo Gonçalves da Enoteca de Belém.
Quando decidiram fazer este filme? E porque escolheram Vincent Van Gogh?
Dorota Kobiela: A decisão final de que iríamos fazer uma longa-metragem foi tomada em 2012.
Hugh Welchman: Sim. A ideia da Dorota surgiu há 10 anos atrás, porque ela queria juntar a sua paixão pela pintura com o cinema. Queria trazer vida aos quadros através das histórias dos artistas e [virando-se para Dorota] o Vincent era a escolha mais óbvia uma vez que leste as cartas quando tinhas 15. E foste ao museu…
DK: E fui ao museu quando era muito nova!
HW: Com os quadros do Vincent era muito diferente, porque ele pintava tudo o que o rodeava, não é como se fosse só quadros religiosos. Van Gogh pintava o seu quarto, a vista do quarto, a sua comida, a pessoa que lhe servia a comida, o carteiro, o campo… Torna-se muito mais fácil ter uma ideia do mundo em que ele vivia. Quando começámos a desenvolver o argumento, havia imensos mistérios sobre cada personagem, tivemos de fazer muita pesquisa e aos poucos fomos encontrando as respostas que procurávamos. Podemos dizer que fomos detetives por 3 ou 4 anos enquanto estávamos a escrever o argumento e foi assim que a história tomou forma.
Dorota, de onde surgiu a sua admiração por Van Gogh?
DK: Foi muito cedo porque eu estava no ensino de Belas Artes e aos 15 anos, e como o Hugh disse há pouco eu li as cartas de Van Gogh e depois fui ao museu quando devia ter uns 16 anos. Foi um fascínio que surgiu quando ainda era adolescente.
A ideia inicial já era apresentar “A Paixão de Van Gogh” totalmente através da pintura?
DK: Sim. Primeiramente era suposto ser uma curta-metragem. Tive a ideia há uns 10 anos e queria fazer uma curta-metragem que seria inteiramente pintada.
HW: Porque inicialmente a Dorota queria ser mesmo ela a pintar tudo.
DK: Sim, sim!
HW: Antes de se tornar realizadora.
DK: Queria simplesmente pintar, e depois acabei por me envolver como realizadora noutro projeto de animação [“The Flying Machine”, 2011, co-realizado por Martin Clapp e Geoff Lindsey]. Isso despertou-me a vontade de combinar as duas vertentes, a pintura e a realização. Pensei que seria uma boa ideia fazer um filme todo pintado e contar a história de um artista através das suas obras. E o Vincent era uma escolha muito boa, porque podes contar a sua história e o mundo que o rodeia através dos seus quadros.
Qual foi o processo de escolha dos pintores?
HW: Precisávamos dos melhores pintores que se podia encontrar. As pessoas pensam que pintar como o Van Gogh é fácil. O que não é! É mesmo muito difícil. E tínhamos mais 5000 propostas de pintores de todo o mundo a pedir para trabalhar no filme e com os respetivos portefólios. Selecionámos os 500 melhores e convidámo-los para audições. 3 dias de audições de pinturas. E para os que passaram essas audições, 125 deles, fizemo-los passar por 200 horas de treino. 100 horas de treino em pintura ao estilo de Van Gogh e 100 horas em animação computorizada porque não conseguíamos encontrar animadores a pintar ao nível que precisávamos. Por isso pegámos em pintores e treinámo-los para a animação. Foi um grande empreendimento comparado com outros filmes em que se vê apenas showreels e seleciona-se pessoas. Aqui tivemos de treiná-los. A boa notícia é que como treinámos todos, ficaram treinados para o nosso estilo. Mas depois tivemos de dividi-los em vários departamentos. Alguns tinham muita dificuldade em replicar o estilo de Van Gogh, mesmo sendo excelentes pintores, portanto ficaram a trabalhar nas pinturas das cenas a preto e branco. Outros simplesmente debatiam-se com as pinceladas grossas tão características de Van Gogh, e aí eram destacados para as personagens femininas, porque elas têm traços mais leves. Era como fazer um casting para o papel que desempenhavam melhor.
Relativamente aos atores, como foi trabalhar com eles neste projeto tão fora do comum?
HW: Muitos perguntavam-nos: “Querem que façamos alguma coisa de um modo diferente?” E eu e a Dorota dizíamos:
“De maneira alguma. Devem representar como sempre o fizeram. Estão a dar vida a uma personagem. Façam-no como em live-action e depois o nosso trabalho é arranjar forma de incorporar tudo na pintura.”
O trabalho deles era dedicarem-se ao argumento e dar vida às personagens e depois os nossos pintores/animadores tinham como trabalho dar vida à sua performance através dos quadros, não perdend a intensidade do seu desempenho. Porque o Chris O’Dowd, Jerome Flynn, Saoirse Ronan, tiveram todos uma performance tão poderosa no filme que era uma grande tarefa para os animadores conseguir manter essa personalidade dos atores.
A escrita do argumento foi “Eu gosto deste quadro, devíamos incorporá-lo no filme.” ou “Temos toda a história. Que quadros podemos utilizar?”
DK: Foi os dois, porque senão teria sido impossível! Pensámos nos quadros e sabíamos que as personagens do filme seriam baseadas nos retratos.
HW: E sabíamos onde viviam. Por exemplo, em Auvers, tínhamos o Dr. Gachet, a Marguerite Gachet e todos os quadros que o Van Gogh fez nos jardins dos Gachet, portanto eram aglomerados num grupo. Depois tínhamos os quadros do carteiro Roulin e o café à noite, outro grupo. Foi como criar um mapa das personagens e do que as rodeava e depois tínhamos de os pontos e era uma questão de ver como todos se conectavam na história. Porque às vezes de um ponto de vista dramático queríamos partir numa direção, mas depois estaríamos a ir contra o que aconteceu na realidade e outras vezes queríamos ir noutra direção e não havia quadros para isso. Foi algo pouco comum para o processo de criação de um argumento. Tínhamos certas obrigações relativamente a enquadramentos e personagens. Queríamos dar vida ao maior número possível de quadros do Vincent e ao mesmo tempo contar uma história cativante seguindo um estilo quase policial.
Quantos quadros de Van Gogh estão presentes no filme?
HW: 77 quadros. 70 em todo o seu esplendor e 7 incorporados nas cenas a preto e branco.
Têm uma obra favorita de Van Gogh? Conseguiram colocá-la no filme?
DK: Sim, acho que… Para mim é diferente de dia para dia. Gosto muito dos quadros que retratam a Marguerite. No entanto, hoje por exemplo estou mais inclinada para o “Le Café de Nuit”. Mas não deixo de gostar muito dos quadros com a Marguerite Gachet e o Dr. Gachet. E os auto-retratos de Van Gogh.
HW: Para mim, gosto mesmo muito do “Terrasse du café le soir”, onde se vê o céu estrelado e as esplanada do café à noite. Parece um lugar onde gostaríamos de ir, com aquelas luzes e cores! Sempre achei que era um quadro muito evocativo. Outro quadro que também considero muito poderoso é o auto-retrato em que nos baseámos para a promoção do filme, o que está em exposição no Musée d’Orsay. Sempre que vou lá, acho-o muito poderoso.
Qual foi o maior desafio na concretização deste filme?
HW: O argumento.
DK: Sim, concordo plenamente!
HW: Conseguir a vertente histórica, os quadros e um argumento interessante, todos alinhados para transparecer o máximo possível as cartas do Van Gogh. Trabalhámos mais de 3 anos para conseguir isso. Para além de que só podíamos fazer 90 minutos de filme e havia tanto mais para contar do Van Gogh e dos seus quadros. Foi uma fase mesmo muito difícil. A certo ponto o nosso argumento durava 120 minutos e tínhamos de ser brutais, porque 90 minutos era o tempo certo. Queríamos um ritmo rápido para esta história. Não queríamos partir para as particularidades dos quadros porque sabíamos que estávamos a fazer “A Paixão de Van Gogh” para uma grande audiência.
E já pensaram num próximo projeto?
DK: Ainda não tivemos tempo para começar a trabalhar nele, mas sim já começámos a investigar e será certamente outro filme pintado. No entanto será mais negro em termos de temas e de inspirações. Gostamos mesmo muito dos quadros negros de Goya.
HW: O nosso objetivo é fazer um filme de terror todo pintado, baseado nas obras de Goya.
Como tem sido mostrar “A Paixão de Van Gogh” ao mundo?
DK: É muito emocionante porque tivemos tantas reações maravilhosas dos espectadores nos mais variados festivais.
HW: Dois grandes pontos fortes foram a estreia nos EUA, que desde a estreia somos um dos filmes mais bem cotados pela crítica e pelo público, de todos os que estão em exibição. E nos últimos dias o filme estreou em Itália e ficámos em nº1 no box-office italiano. Até batemos o Blade Runner 2049! [Numa exibição especial de apenas 3 dias “A Paixão de Van Gogh” obteve o dobro das receitas de bilheteira de “Blade Runner 2049”. O sucesso foi tanto que o filme regressará aos cinemas definitivamente em Novembro: Loving Vincent, il film interamente dipinto batte al box office i replicanti di Blade Runner 2049].
O filme tem sido muito bem recebido tanto pela crítica como pelo público…
HW: Todas as manhãs vou ver o que as pessoas dizem no instagram depois de terem ido ver o filme e têm feito comentários tão lindos que ficamos muito emocionados.
DK: É mesmo!
HW: Temos sempre esperança que as pessoas encontrem algo naquilo que fazemos e que sejam movidas por isso. Mas nunca imaginámos que teria um impacto tão grande, relativamente ao que as pessoas sentiam relativamente ao filme. Foi uma surpresa incrível.
“A Paixão de Van Gogh” já se encontra em exibição nos cinemas portugueses e encontra-se na corrida ao Óscar de Melhor Filme de Animação.