“Foge”, um thriller terrorífico que traz boas interpretações, um argumento fora da caixa e uma realização muito competente.
“Foge” tem a seguinte premissa: um jovem afro-americano vai conhecer os pais da sua nova namorada branca na sua propriedade isolada. Em pouco tempo, o ambiente totalmente amigável dá lugar a um enorme pesadelo.
Tendo neste pequeno parágrafo, o mote sido dado para os que querem ver, é importante referir que é imprescindível não colocar de lado a possível, e mais que previsível ideia pré-concebida, que é só mais um filme entre todos os outros que fazem alusão ao terror e que se deixam cair no clichê, perdendo qualquer brio que pudessem ter.
O filme tem uma cena introdutória que impõe respeito. Extremamente bem conseguida, serve como aperitivo antes de o prato principal ser servido. Tem, com esta e a cena seguinte, um excelente início. Uma banda sonora prometedora, com uma música de Childish Gambino (nome artístico de Donald Glover) que consegue elucidar, apresentando, de certa forma, o que está para vir.
But stay woke,
Niggas creepin’,
They gon’ find you,
Gon’ catch you sleepin’,
Now stay woke,
Niggas creepin’.
Porém a banda sonora não mantém a qualidade ao longo de todo o filme. Verdade é que a banda sonora é adequada durante quase todo o filme, mas quebra em alguns momentos, não sendo o seu desempenho consistente ao longo de todo o filme.
Abordando ainda o início do filme, logo após o mote ser dado, é ali que é acendido o rastilho que dura até perto do fim e que vai explodindo por três ou quatro vezes até à derradeira explosão. Tem mesmo, neste risco de pólvora, o seu argumento. Comparável aos filmes sul-coreanos, embora sejam estes últimos mais arrojados, o argumento é totalmente fora da caixa. É como um estouro, um kick, um forte abanão. Tem o mérito de, ao mesmo tempo, ser fora da caixa e ter bastante qualidade. Com cenas únicas, tem na mais inusitada de todas, a enigmática cena do leilão.
Repleto de inteligência, com um humor nada exagerado, conseguindo, pelo contrário, ser bastante subtil, o filme tem estes argumentos que abonam para que o próprio suba diversos degraus, naquela que é a escada em que todos querem chegar ao topo.
O preto está na moda!
“Foge” tem uma realização coerente. Sem falhar, embora correndo alguns riscos, consegue planos muito bons e transições (ou travelings) que encaixam muito bem no momento e no que se quer mostrar em cada cena. Segura e sólida, a realização por parte de Jordan Peele, tem a ousadia necessária para marcar pela diferença. Sem nunca perder o rumo, a própria realização é fiel à forma como o filme é contado. Em momento algum é posto em risco o desenrolar do próprio filme.
Tem, visualmente, várias cenas invulgares e bastante bem conseguidas. Sem nenhuma muito chocante, tem no “afundar” de Chris Washington e no laboratório, alguns pontos fortes desta realização. Porém, esta não é potenciada ao máximo.
Contudo, sendo este o primeiro filme realizado e escrito na íntegra por Jordan Peele, é fulcral evidenciar o enorme passo em frente dado pelo realizador. Com uma margem de progressão enorme, o americano de 41 anos, não tendo uma realização de excelência, está deveras bem lançado para no futuro continuar a surpreender e realizar grandes obras.
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Um thriller terrorífico que, por ser bom e por serem poucos os bons, traz-nos uma lembrança, ainda que muito ténue, de uma obra de arte realizada por Stanley Kubrick, “The Shining”. É evidente que a colheita não é a mesma. A uva mais doce e mais saborosa, não pode ser confundida e, muito menos, equiparada a uma uva menos adocicada e mais amarga, mais ácida. Porém, é de ressalvar que a vindima e o peso da uva cumprem as regras básicas e conseguem transcenderem-se até certo ponto.
O realizador e argumentista do filme consegue agarrar bem o momento histórico em que o mesmo se passa, aproveitando-o da melhor forma. Uma suposta crítica a Trump e uma outra suposta adoração por Obama, servem para conseguir um filme que aborda o racismo, mas que não cai no exagero e na forma leviana de abordar o tema. Ao invés, a essência do filme é extremamente sarcástica e intrinsecamente macabra.
Todos os atores têm uma performance com muito rigor. Talvez a de Daniel Kaluuya seja a que se considere mais difícil. Mas mesmo essa, bem como todas as outras, é de grande qualidade. Sempre sem sair do tom, representando muito bem, os atores conseguem a proeza de deixar os espectadores atentos e presos ao ecrã. A ânsia e a perturbação, no bom sentido, nunca são postos de lado. É, pela cumplicidade e pela empatia sentida pelo protagonista, que isso acontece. Os sentimentos e emoções vividos pelo personagem principal, não são apenas sentidos por ele, mas também por quem vê.
Uma fotografia obtida com alguma astúcia e uma montagem equiparável, tem nestes, e também nos bons efeitos visuais, as partes técnicas que mais do que embelezar e abrilhantar o filme, sendo competentes, contribuem para dar corpo e realçar a solidez com que ”Foge” é feito. É difícil e quase inglório classificar cada parte do filme individualmente. O filme funciona muito bem no seu todo, complementam-se todas as partes entre si.
Não são demais as nomeações aos Óscares que o filme recebeu. Melhor filme, realizador, argumento original e ator principal. São estas as categorias para as quais foi selecionado pela Academia como possível vencedor da famosa estatueta dourada.