“Doutor Estranho no Multiverso da Loucura“, realizado pelo aclamado Sam Raimi, estreou a 5 de maio, e está a dividir os fãs. Há quem se sinta defraudado pelo filme, tendo em conta as expectativas, e há quem tenha adorado exatamente por desafiar as mesmas.
Comecemos pela premissa. O Doutor Estranho, figura conhecida do MCU, onde já figurou em outros 5 filmes, enfrenta desta vez um adversário à sua altura… cuja identidade não posso revelar, embora não seja difícil adivinhar, para quem está a par do que aconteceu em Wandavision, minissérie que estreou na Disney+ no ano passado. Para além desta ameaça, Strange ainda vai ter de lidar com uma realidade que lhe era desconhecida até então: o multiverso.
O regresso de Sam Raimi
Quando Sam Raimi foi anunciado como realizador deste “Doutor Estranho”, a pergunta nas mentes de muitos cinéfilos era: será que vão deixar o Sam Raimi… ser o Sam Raimi? Muitos filmes desta franchise tendem a parecer iguais, como que feitos numa linha de montagem, formatados para a conformidade. Isso não é um problema para muita gente, claro, mas sente-se falta de inovação, de ambição em trazer algo de diferente. Foi com grande rejubilo que, ao longo da projeção, descubro que, felizmente, deram rédea solta a Raimi.
Este é um filme que transborda personalidade, mais que qualquer outro da saga (só os filmes dos Guardiões da Galáxia, de James Gunn, se aproximam deste nível de individualidade). As idiossincrasias de Raimi são bem visíveis – temos montagens criativas, movimentos de câmara audaciosos, e até zombies! Aliás, todo o filme usa e abusa de elementos do género de terror, o que torna o filme ainda mais único dentro do canon do MCU.
Um dos maiores elogios que se pode fazer a este filme é que realmente faz lembrar uma banda-desenhada viva. Raimi já tinha provado com a trilogia do Homem-Aranha, nos anos 2000, que sabia transportar os comics para o grande ecrã como mais ninguém, e volta a fazê-lo aqui.
Uma narrativa alucinante
O grande mérito deste filme é claramente a realização de Raimi, sem dúvida. Na verdade, coisas que poderiam não funcionar em teoria, funcionam devido à mão firme do realizador. Raimi percebe como um filme deste género funciona como poucos, e ele parece estar em sintonia com Michael Waldron, o argumentista, na maioria das vezes. No entanto, o primeiro ato é claramente onde o filme tropeça mais, caindo não só em sequências com demasiados diálogos expositivos, mas também ao abusar das “piadinhas” muito recorrentes nos filmes da Marvel.
Felizmente, assim que entra o segundo ato, Raimi liga a engrenagem e o filme realmente encontra o tom e ritmo certos. Há uma energia caótica (e quase demente) que toma conta do filme, que nos agarra e não nos larga até aos créditos finais. Em suma, é uma montanha-russa. Quer gostem quer não, o filme toma riscos, algo que não diria acerca de um filme da Marvel desde Avengers: Infinity War. Algumas decisões, mesmo relativas ao chamado fan service, que é incorporado decentemente, são realmente surpreendentes, e mostram a ambição deste filme em se destacar do resto.
Um escopo épico, mas uma história íntima
Mas, mais importante ainda, é que, salvo algumas exceções, tudo é feito em prol das personagens, e da viagem que ambas embarcam. Aqui refiro-me particularmente a Wanda Maximoff (Elizabeth Olsen) e o Doutor Estranho (Benedict Cumberbatch), já que America Chavez (Xochitl Gomez) tem um papel mais secundário, servindo como uma espécie de MacGuffin.
Wanda, vulgo Feiticeira Escarlate, recebe uma emotiva e satisfatória conclusão para o arco que começou a ser desenhado em Wandavision, levando a personagem para sítios nunca antes imaginados. Elizabeth Olsen é incrível no papel, com uma interpretação com grande alcance e entrega, como já tinha demonstrado na minissérie já mencionada. Além disso, ela está claramente a divertir-se à brava no papel, e isso é contagiante.
Benedict Cumberbatch, da mesma forma, nunca esteve mais confortável no papel do que aqui, mesmo ao interpretar várias versões do personagem. Strange, embora não tenha um jornada emocional tão pronunciada como a de Wanda, também tem um arco dramático eficaz, que tem início quando Christine Palmer (Rachel MacAdams) lhe faz a tão singela pergunta “és feliz?”. Essa questão dá o mote para toda a discussão temática que o filme apresenta. E se houver uma versão de nós mesmos mais realizada que esta? Será que alguma vez a alcançaremos?
É isto que Sam Raimi consegue fazer tão bem: balançar o espetáculo (que chega a roçar o camp) e o drama humano das personagens. Nós realmente preocupamos-nos se estes feiticeiros e magas e super-seres encontram a felicidade – e isso é prova de um trabalho bem feito. Consegue ser filme da Marvel, como nos acostumou, mas também algo mais. E após tantos filmes, já não era sem tempo alguém tentar algo diferente que desafiasse a fórmula, fazendo jus ao nome do herói… Estranho. Bem vindo de volta, Sam Raimi.