Let’s Talk #49 – O lendário realizador Jean-Paul Rappeneau

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Padrinho da 19ª edição da Festa do Cinema Francês, Jean-Paul Rappeneau, realizador de “Cyrano de Bergerac”, esteve à conversa com o Cinema Pla’net.

Jean-Paul Rappeneau
Jean-Paul Rappeneau

Hoje em dia, antes de realizar um filme tem toda a montagem preparada mentalmente, plano a plano. É algo que faz desde o início ou que se desenvolveu ao longo dos anos?

É assim desde o início, mas claro que fui aperfeiçoando como sistema ao longo dos anos. No meu primeiro filme, “Escândalo no Castelo”, há muito tempo e talvez porque fui assistente de realização, não conseguia compreender como é que os meus amigos podiam começar um filme, às vezes logo no primeiro dia, a dizer “Talvez devamos filmar ali, ou lá, ou talvez lá…” Isto acontecia por causa da Nouvelle Vague, início dos anos ’60, através da escola dos Cahiers du Cinéma, que dizia que o cinema clássico francês tinha de encontrar uma liberdade, de não saber o que fazer e ir inventando aos poucos. Eu não conseguia imaginar-me nessa situação, de chegar na manhã do primeiro dia de filmagens sem saber o que fazer, portanto, ao longo destes anos, continuo a ter uma imagem e a desenvolvê-la.

Quando escrevo uma primeira versão da história, aperfeiçoo-a com um outro argumentista, que combina pouco a pouco a dramaturgia e isso dá origem a uma segunda versão, terceira, quarta e depois começo a escolher os atores. Quando o argumento parece mesmo escrito e sabemos quem pode tomar o lugar de cada personagem, começamos a pensar nos lugares, porque um lugar é sempre muito importante. É preciso procurar os lugares e modificá-los de acordo com a história. De início fazia isso tudo sozinho, depois passou a ser a ‘script-girl’, que era a minha irmã Elizabeth, o meu braço direito. A certo ponto, quando temos tudo, faço como se visse as personagens no décor que escolhi ou que mandei construir.

Jean-Paul Rappeneau
“Que Famílias!” (2015), com Mathieu Amalric, Karin Viard, Gilles Lellouche e Marine Vacth

Por exemplo, no “Que Famílias!” filmámos em várias localidades para formar uma vila imaginária. Tento imaginar como se pode desmontar e remontar um lugar dramaticamente. O filme constrói-se e a certo momento vejo-o na totalidade. Eu desempenho as cenas, improviso-as, com a minha assistente no computador a apontar tudo, vejo a disposição, o movimento e é raro que depois isso mude durante as filmagens.

Uma personagem entra, diz qualquer coisa e vai ao fundo da sala. É muito raro que mais tarde um ator chegue e diga “Não sei porquê, não me apetece ir até ali.”. Acontece e pode-se mudar, mas em princípio há uma harmonia entre os sentimentos exprimidos e o movimento da câmara. Procuro um estado de graça geral onde o movimento conta muito, o dos atores e o da câmara, já o pensei antes e na filmagem tento colocar em prática, o que imaginámos os dois, eu e a script-girl, um cinema que a certo momento é muito comparado, muito escrito, mas sempre trabalhei assim.

Jean-Paul Rappeneau
“Boa Viagem” (2003), com Isabelle Adjani, Gerard Depardieu, Virginie Ledoyen, Yvan Attal, Grégore Derangère e Peter Coyotte

Mesmo em “Boa Viagem”, que tem mais de 1400 planos?

Sim sim é verdade, tinha-os todos na cabeça.

Porque como trabalha o argumento desde o início forma-se uma ideia…

Um realizador é mesmo isso. É um homem que responde a muitas perguntas o dia todo – “Senhor, fecha-se as percianas?” “Não não porque tem de se ver a rua.” “Ah! E é preciso ter café?” “Sim.” “E a máquina do café funciona?” “Claro que funciona.” – Estou a brincar, mas é verdade. O Depardieu é que não gosta de falar antes das filmagens. Ele gosta é de representar, mas se lhe falarmos antes, ele diz “Já vemos isso”, ele subestima tudo o que lhe possamos dizer antes, o que conta é no momento, “O que vou dizer?”.

Até ao momento de começar a rodar ele está ao telemóvel, porque o ‘jogo’, o que ele vai fazer, acontece no exato momento em que dizemos “Ação!”. Enfim, é o que ele diz, mas acredito que seja mesmo assim. Não no “Cyrano de Bergerac”, mas mais tarde no “Boa Viagem”, eu dava-lhe um aceno e ele “Ah sim, sim, sim já vou aí, estou pronto, estou pronto!” e ainda está ao telefone a falar com alguém e depois eu digo “Ação!” e ele diz à pessoa com quem está ao telefone “Não desligues, espera um pouquinho.” e para mim acena “Estou pronto”. Pousa o telemóvel, desempenha muito bem o papel e depois do “Corta!”, pega no telemóvel e “Bom, então onde é que íamos?” e é formidável, como se se dividisse em dois, como se viesse de um outro planeta.

Jean-Paul Rappeneau
“Escândalo no Castelo” (1966), com Catherine Deneuve e Pierre Brasseur

De onde surgiu a ideia para o seu primeiro filme “Escândalo no Castelo”?

Na altura ainda era argumentista com o Louis Malle e um dia, para o filme que ele devia rodar, estávamos na Bretagne, Normandia, e nem era bem um castelo, mas procurávamos uma casa à beira-mar. E um dia vimos no golfo de Morbiran um pequeno castelo no meio das árvores junto ao mar que não convinha nada ao Louis Malle, mas para mim era formidável, poderia ser o décor de uma história e tirei-lhe fotos. Durante alguns tempos dizia “Se algum dia fizer um primeiro filme, a história será passada lá.” e é verdade que procurei uma história que se pudesse passar lá. Tinha imagens na cabeça, daquilo que tinha visto, quando inventei a história e finalmente acabámos por fazer o filme numa casa perto de Paris porque ficava muito caro na Normandia. Mas enfim, o lugar é capital para mim e prévio a toda a história, uma história que se passa em determinado lugar. É o caso para “Que Famílias!”, “O Hussardo no Telhado”… Por exemplo, “Que Famílias!” veio de uma ideia da casa onde tinha vivido em criança, na Bourgogne, aliás uma casa que é sempre meio castelo meia casa porque foi onde vivi em criança.

Jean-Paul Rappeneau
Gerard Depardieu e Philippe Volter em “Cyrano de Bergerac” (1990)

Quando decidiu adaptar a obra de Edmond Rostand, autor de “Cyrano de Bergerac”?

Estava a preparar um filme, a escrever uma história que devia fazer com a Isabelle Adjani e um dia ligaram-me, um produtor que queria adaptar a peça de Rostand, porque os direitos eram públicos, isto porque segundo a lei francesa, 50 ou 60 anos depois da morte do autor, os direitos são livres e então “Os direitos são livres, quer realizá-lo?” e no momento eu disse “Mas espere, um filme para a televisão?” “Não, para o cinema” “Mas isso é uma peça, está muito datado.” Não percebia o que ele queria fazer. Não podia imaginar que conseguiria fazer um filme de cinema, portanto, hesitei muito tempo.

À força de me lembrar de que quando era criança na primeira vez que fui ao teatro, com 6 ou 7 anos, foi para ver ‘Cyrano de Bergerac’, e que estava entusiasmado com a peça, mas que me esqueci com os anos, foi logo essa a primeira imagem que tive, que poderíamos tentar contar a história como se fosse uma criança, como eu, que viria ao teatro pela primeira vez para ver a peça. É por isso que o filme começa com um pequeno rapaz a chegar ao teatro, um rapaz que não estava na peça original, e ao repensar a história com essa personagem, com esse olhar, comecei a adaptar com o Jean-Claude Carrière a paixão pela peça e pelo facto de a transformar, de fazer entrar o cinema e de fazer com que algo que é completamente teatral, fosse transformado num filme que agora faz uns 25 anos… e depois o Gilles Jacob… espere, é 30 anos, não é?

Foi em 1990.

Sim, é isso, porque filmámos em 1989 e depois fizemos algumas projeções em 1990, antes do Festival de Cannes e um dia na sala estava o Gilles Jacob, selecionador do festival, e quando ele viu o filme disse “Hey, meus caros, têm de levar isto absolutamente a Cannes!”. Nesse momento a seleção oficial já estava feita e ele “Não, muito pelo contrário.”, o que depois foi uma grande história com os realizadores que já tinham sido selecionados e que acabou por mudar tudo. Mas para o Gilles, quando ele viu aquilo como um filme e não como uma peça de teatro, projetável em Cannes, apercebi-me de que tinha feito algo bem. Isto porque todo o trabalho com o Depardieu não tinha nada a haver com o “blá, blá, blá” do recitar dos versos alexandrinos, nós queríamos acrescentar movimento.

E depois vieram os Óscares e os Césares… todas as nomeações.

Mais que nomeado, ganhámos prémios.

Com certeza, o filme recebeu 10 Césares em 13 nomeações, é o “Titanic” dos Césares, um dos filmes mais nomeados e premiados de sempre.

São dois na história dos Césares. O primeiro foi “Le dernier metro” do Truffaut e o segundo foi o “Cyrano de Bergerac”, e nos dois filmes estava lá o Depardieu que a cada vez ganhou o prémio de Melhor Ator.

Jean-Paul Rappeneau
“O Homem do Rio” (1964), com Jean-Paul Belmondo

Mas já em 1965 tinha sido nomeado aos Óscares, ainda antes de realizar o seu primeiro filme.

Por “O Homem do Rio”, o argumento do filme.

E como foi essa primeira vez nos Óscares em comparação com o “Cyrano de Bergerac” em 1990?

Na primeira vez nem fui, porque passava-se lá em Los Angeles e eu simplesmente “Muito bem! Fomos nomeados!” e, no entanto, parece que “O Homem do Rio” até inspirou o Spielberg, quando ele começou a pensar na personagem do Indiana Jones. Mas no momento de “Cyrano de Bergerac”, logo a seguir à revelação das nomeações [“Cyrano de Bergerac” foi nomeado a 5 Óscares], como também estava nomeado para Melhor Filme Estrangeiro pensávamos mesmo que íamos ganhar e então fui até Hollywood… só que houve toda uma história.

Foram buscar uma antiga entrevista do Depardieu, enfim, houve um conluio na imprensa, onde foram buscar um velho artigo de quando ele era jovem e interpretaram-no como sendo um delinquente, e quando as pessoas da Academia leram aquilo, e eu li o artigo com ele, nesse momento dissemos um para o outro “Estamos lixados.”, porque todos iam ler aquilo e não agradaria nada aos votantes. No final não ganhámos Filme Estrangeiro, nem o Depardieu Melhor Ator. [O filme apenas recebeu o Óscar de Melhor Guarda-Roupa]

No entanto é ainda hoje considerado um dos melhores filmes franceses de sempre…

E é por isso que me agrada este restauro do filme em digital e a primeira projeção em sala, com um verdadeiro público, penso que a sala tenha 800 lugares aqui no São Jorge, e portanto isso dá-me um grande prazer de que a primeira vez que o vou ver junto de um público seja aqui em Lisboa, porque ainda não houve projeção em França, só daqui a mais de duas semanas.

E aqui o filme também vai sair nas salas de cinema. Hoje é a sessão de abertura da Festa do Cinema Francês e amanhã estreia nas salas de cinema portuguesas.

Antes de França!

Jean-Paul Belmondo e Marlène Jobert em “Os Noivos da Revolução” (1971)

Como foi trabalhar com Jean-Paul Belmondo, um ator tão amado pelos franceses?

Com o Belmondo foi “Os Noivos da Revolução”, um filme de aventura. As recordações da infância, enfim, quando penso agora nisso com a idade que tenho, coisas que me marcaram na infância, encontram-se muito no início de vários dos meus filmes. Há pouco eu disse que a primeira peça que vi aos 7 anos foi o “Cyrano de Bergerac”, mas nessa altura eu nunca tinha ido ao cinema e o primeiro filme que vi, foi preciso aguardar quase pelo final da Segunda Guerra Mundial, em 1944, quando o cinema norte-americano voltou à Europa, pelo menos a França.

O primeiro filme que vi foi o “Robin dos Bosques”, com o Errol Flynn, um filme de Michael Curtis, “Robin Hood! BAM, bim, bim, BOOM!” e para mim durante algum tempo o cinema era de pessoas que lutavam umas com as outras e havia sempre na minha cabeça a ideia de fazer um filme de aventuras, como na minha infância e “Os Noivos da Revolução” era um pouco disso. A história de um tipo que vive na América e que regressa durante a Revolução. O Belmondo, conhecia-o bem, porque tínhamos trabalhado no argumento de “O Homem do Rio”. Sempre pensei que a personagem do jovem francês intrépido e aventureiro seria o Jean-Paul Belmondo, portanto é um filme que foi escrito a pensar nele e numa época em que ele tinha tanto sucesso que bastava contar aos produtores o filme em algumas palavras, antes mesmo de a história estar toda escrita, para obter o financiamento, do género: “É com o Jean-Paul Belmondo. Ele começa na América, atravessa o Atlântico e cai no meio da Revolução Francesa, no fim do séc. XVIII.”.

Mas era um argumento muito caro de filmar, demasiado caro para fazer em França. Finalmente o único meio que tivemos foi de rodar na Roménia, na época do Ceausescu, num país que não ia bem, sob o regime comunista, mas graças ao cinema romeno em que tudo era mais barato que em França, pudemos fazer lá o filme. Dadas as condições e a população que sofria, havia algo de duro para nós, o grupo de franceses felizes num país tão sombrio, e foi graças ao Belmondo, que aguentou as filmagens durante vários meses num país difícil, que conseguimos terminar “Os Noivos da Revolução”. O facto de não ter quebrado e de não ter dito “Já não aguento, vou regressar a França! Já não posso mais com isto.”, reconheço-lhe isso.

Para quando um novo projeto?

Gostava de fazer um filme para o ano. Espero eu, a ver vamos. Sou um outro homem quando filmo, é como uma outra vida. Rodar um filme é mesmo isso. Não podemos viver 50 vidas, mas eu fiz 8 filmes portanto tive 8 vidas. A cada vez são 4 ou 5 anos por projeto, anos esses que me fazem ir adiante.

Mas também há os que não se concretizam, como nos 12 anos entre “Boa Viagem” e “Que Famílias!”.

Pois, eu quase nunca falo sobre isso, mas houve vários projetos que não seguiram em frente. Há pouco estava-lhe a falar de um projeto com a Isabelle Adjani que nunca cheguei a fazer, porque chegou o Cyrano e como eu me entendia muito bem com ela e queria trabalhar com ela, quando me ligaram por causa do Cyrano, a primeira coisa que pensei foi na Roxane – “Vou propô-la à Adjani”. Só que ela respondeu-me “Pois, mas aí então não é nada do que tínhamos combinado. E não posso porque a Roxane é loira.” e eu “Mas como loira?” / “Está escrito no texto” / “Podemos mudar.” / “Não, não. Ela é loira, é loira e eu não posso, sou morena.” / “Mas isso não faz mal, vamos dizer que ficou morena.” / “Nem pensar isso é mudar demasiado, vai dar problema.” É verdade, mas foi muito gentil, enfim, eu gosto muito dela. [O papel de Roxane acabou por se entregue a Anne Brochet.]

Jean-Paul Rappeneau
Gerard Depardieu e Anne Brochet em “Cyrano de Bergerac” (1990)

De todos os filmes que realizou, qual deles se impôs mais como um verdadeiro quebra-cabeças?

Diria talvez o “Cyrano de Bergerac” porque tenho o hábito de inventar as histórias e quando acabo de inventar tenho mesmo a certeza de que é isso que vou fazer, mas com o Cyrano como não pensei, como foi algo que me propuseram, foi preciso convencer-me a fazer um filme em alexandrinos, em verso, como no teatro francês do séc. XVII, sendo a rodagem em que tive mais medo o tempo todo. “Será que as pessoas vão suportar isto? Em que é que vai dar?”.

Quando contei aos meus filhos eles disseram “Ah bom! Mas isso é uma peça de teatro.” / “Sim, mas vou fazê-lo de maneira diferente.” / “Mas espera, na peça as pessoas falam em verso como na escola?” / “Com certeza.” / “Mas no filme não vão falar em verso, obviamente.” / “Sim” / “Oh não papá, não nos faças isso! Nós estudámos isso nas aulas, não faças uma coisa dessas.”

Não sabia mesmo se ia conseguir, foi um desafio para mim próprio e quando começámos a fazer a montagem havia um tipo que fazia a truncagem… isto já em França, porque rodámos na Hungria e depois trouxemos tudo, enfim, um filme na Roménia com o Belmondo, um filme na Hungria com o Depardieu, portanto percorremos a Europa de Leste… mas como estava a dizer, esse tipo veio ajudar-me e depois falei com a montadora e perguntei-lhe “O que disse o rapaz do que viu?” e ele tinha dito O Rappeneau tem consciência de que está a fazer uma obra-prima?” e isso acalmou-me, tive mais confiança em mim.

“Cyrano de Bergerac” está em exibição nos cinemas portugueses, em cópia digital restaurada, desde 5 de outubro. A Festa do Cinema Francês decorre até 11 de novembro por várias cidades de Portugal.

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