Pensar naquilo que um filme deve ter antes sequer de o ver é mais prejudicial para o público do que para os artistas responsáveis.
Novamente concluo que acertar na mosca é mais fácil do que agradar os críticos americanos. Não é desgostando de todas as obras que se avalie que um crítico se torna num sábio erudito de gaveta. Acontece isto com qualquer blockbuster, como o recente “Star Wars: Episódio VIII – Os Últimos Jedi”, mas principalmente com obras modernas que toda a gente decide desgostar coletivamente.
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O filme conta a história real de Caroline Weldon (Catherine no filme), uma pintora suíça recém-viúva e alegremente livre. Durante a última década do Século XIX, esta viaja de Nova Iorque para Dakota do Norte. O seu objetivo é pintar o (futuramente famoso) retrato do Touro Sentado, o infame chefe indígena da tribo dos sioux. Para além de se relacionar com o mesmo, vê-se envolvida num conflito territorial e político relacionado com o exército americano e o povo índio negligenciado.
A realização esteve a cabo da Susanna White, responsável pelos medianos “Nanny McPhee e o Toque de Magia” e “Um Traidor dos Nossos”, chegando aqui a um dos seus trabalhos mais interessantes. A inglesa serve-se do argumento do grande Steven Knight, a mente por detrás de “Promessas Perigosas”, “Locke” e “Peaky Blinders”. A verdade é que a realizadora se supera e demonstra que o empoderamento feminino e as diversas histórias de mulheres de destaque têm cada vez mais um lugar assegurado e importante no cinema atual. Apesar de ser claramente inferior ao Paul Verhoeven e ao Kleber Mendonça Filho, Susanna White encontra-se mais que comprometida a desenvolver a sua protagonista com a devida honestidade e multidimensionalidade. Posto isto, porque é que “Mulher Que Segue à Frente” foi tão desprezado?
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O filme estreou no Festival de Toronto do ano passado, tendo sido apenas lançado em Junho deste ano nos EUA. Arrecadou uns míseros 57 mil dólares contra um orçamento de 5 milhões. Não são estas as razões que levam à pobre receção crítica… Mas a verdade é que a psicologia das avaliações dos críticos cinematográficos também funciona mal e tem podres. Para quê falar bem de um filme pelo qual ninguém espera, não é? Para além disso, “Mulher Que Segue à Frente” tem o azar de ser um filme biográfico. E, quer queiramos quer não, haverá sempre aquela facção que detesta incongruências com os factos verídicos. Por muito boa que seja a representação da evolução ativista e artística da Caroline Weldon e tendo em conta que vivemos na era das indignações online, não é difícil entender a razão por detrás da indiferença (ou raiva) para com o filme.
De qualquer maneira, comecemos pelos prós. A fotografia do Mike Eley invoca uma paz em todas as composições visuais. Existe um azul subtil presente em grande parte das vastas visões panorâmicas representativas da hostilidade e beleza do deserto americano. Popularizado, claro, pela civilização indígena, e não pelas cabanas poeirentas do exército. As cenas noturnas são fotografadas maioritariamente com luz de uma fogueira ou de um pequeno lampião.
Toda a estética (guarda-roupa, design de produção, cenários) é agradavelmente representativa da época. É igualmente acompanhada por um bom trabalho de caraterização e de maquilhagem, auxiliando também as cenas mais violentas e gráficas. Há particularmente uma que ninguém é capaz de prever. O efeito sonoro foi suficiente para me doer a mim também. Já a banda sonora é composta quase apenas por uma viola profundamente agradável que consegue se inserir em cenas dramáticas sem estragar a ação em si.
O elenco e o argumento do filme formam um bonito casamento e praticamente todos os atores fazem um ótimo trabalho. Os diálogos são bons, conseguindo também transmitir leveza e dureza quando necessário. Todavia, há inúmeras cenas que se teriam beneficiando de alguns silêncios. O diálogo estica-se em determinadas (e relevantes) cenas, deixando-as escassas de informação que avancem a narrativa. E, para dizer a verdade, faltou qualquer coisa naquele final.
A Jessica Chastain continua sólida, altiva e elegante como sempre. Todavia, podemos vê-la mais ingénua, inocente, indefesa e até romântica do que o costume. A partir do voice over inicial, é muito fácil ficar imediatamente do lado dela, sabendo apenas o básico acerca do seu passado. A personagem não é tão profunda como a Molly Bloom, mas a atriz demonstra novamente porque é que é uma das melhores profissionais atuais na sua área.
O melhor personagem é, sem dúvida, o chefe Touro Sentado. O canadiano Michael Greyeyes rouba todas as suas cenas e tem alguns dos melhores momentos do filme, nomeadamente dois excelentes monólogos. O público repara no seu difícil conflito interior moral e social, sem o ator revelar muita coisa verbalmente. Fora os mencionados monólogos, este permanece reservado, carismático e introspetivamente inspirador, desenvolvendo coragem e autoridade no processo. Juntamente com ele, são expressos respeitosamente diversos conceitos e tradições indígenas que levantam o interesse do espectador. A partir daqui o filme demonstra o quão quer homenagear a cultura dos povos tribais dos EUA – dos “verdadeiros americanos”.
O Sam Rockwell teve azar. O facto de “Mulher Que Segue à Frente” estar pronto há mais de um ano, mas estrear poucos meses depois da sua vitória nos Óscares não é sinónimo de uma má interpretação, mas afeta-lhe a carreira. Acontece que o seu personagem é uma versão mais detestável, racista e seca do Jason Dixon em “Três Cartazes à Beira da Estrada”, que sempre tinha um lado cómico e um arco muito mais significativo. Será difícil nos distanciarmos dessa ideia. De qualquer maneira, o ator é excelente e faz um trabalho à altura.
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O Bill Camp tem uma presença autoritária e surpreendente. Inicialmente, parece-se apenas mais um político americano racista, incoerente e antagónico. No entanto, sem pintar muita coisa acerca da sua personalidade, a realizadora dá-lhe espaço para revelar as suas camadas. E, de certa maneira, suavizar a tensão do público. No entanto, o Ciarán Hinds e o Chaske Spencer sofrem ambos de talento inutilizado e personagens diversificados e promissores que acabam desvalorizados e esquecidos.