Em menos de 30 segundos de conversa, foi num inopinado aceno que, encurralado pela pergunta mais vazia possível, respondeu comprometidamente: “Nós vivemos num tempo em que, enquanto cultura, tememos o outro, seja este um misterioso invasor que pensamos que nos virá matar e apoderar-se dos nossos empregos ou uma fação da qual não vivemos perto, que votaram de maneira diferente de nós. Só apontamos o dedo. E eu quis sugerir que talvez o monstro para o qual precisamos mesmo de olhar somos nós. Se calhar, o maior mal somos nós.”.
Os Estados Unidos estão longe de alguma vez entenderem a mestria que por aquela mente deliciosamente distorcida e pessimista paira, marcando a sua presença pública com uma face mais risonha e amiga de quem assistia a “Key & Peele”, à procura de rápidas e satisfatórias doses de entretimento e insignificante galhofa, raramente capaz de extrair algo importante. Uma vez inserido na indústria cinematográfica, obtida rapidamente a atenção (e sorte, dada a hostilidade do mercado e das escolhas do público) de uma grande porção da manada de espectadores mainstream disposta a pagar para ver o que raio o homem por detrás de inúmeros sketches televisivos faria com 2 horas de cinema, dissolvendo os seus elementos cómicos com irresistíveis sátiras negras da sociedade americana.
Por vezes, de há uns anos para cá, a impressão que retive era a de que todas as personalidades do entretenimento e da cultura fofoca de Hollywood, sem exceção, se teriam juntado a um cego, populista e oportunista movimento de ódio fácil para com o narcisista vencedor das polémicas eleições presidenciais do melhor país do mundo. Autorais bacoradas machistas, homofóbicas, xenófobas e simplesmente absurdas credibilizavam as duras críticas que se faziam ouvir relativamente ao megalómano supremo e antiga celebridade de reality shows. Tanta conversa fiada já metia nojo.
Apenas acompanhando as decisões que têm sido tomadas e os comentários que têm sido pronunciados pelo senhor Presidente, apercebo-me, talvez afinal numa condição suficientemente contextualizada, que toda a degradação ética que declaravam existir na personalidade de Donald Trump é, de facto, factual.Tão factual como o modo pelo qual o Tio Sam da vez opera a nação que (estranhamente ou não) o elegeu, lidando com seres humanos como se tratassem de transitórios números numa folha de Excel ou de doentes ratazanas à espera de um potente antídoto. Qualquer um que se informe sobre o decadente cenário das fronteiras mexicanas facilmente partilhará esta revolta interior.
“Nós”, uma impressionante segunda longa-metragem na carreira de um cineasta abundantemente talentoso que tem vindo a plantar o seu auge durante o governo de um dos homens mais perigosos da atualidade, é uma peça instrumental para entendermos o funcionamento reles do dito cujo e da nação que vigia e controla. É, inclusive, uma gigantesca e pessimista metáfora para o maléfico e incorrigível lado individual, à distância de um gatilho, de uma faca, de uma tesoura de nos tornarmos nos mais assustadores monstros, precisamente naqueles que nos convencemos diariamente estar acima moralmente, esses pobres e imundos animais que farão tudo para se expulsarem vitaliciamente do ambiente voraz e sombrio no qual tiveram a infelicidade de nascer, contra todas as benevolências que se clamam nas pacíficas, acolhedoras e seguras ruas dos favorecidos, cujas visão e audição apenas conhecem a respetiva realidade.
Em função de curar a ausência de um teto, de uma cama envolvida por calorosos lençóis e cobertores, de um emprego digno das gotas de suor, de uma refeição quente e saudável para si e para toda a sua família. Se tais privilégios se obtivessem apenas a recurso a uma repentina, impiedosa e sangrenta vingança, que razões surgiram para se opor? Não faríamos todos nós o mesmo? Até os miseráveis infantes se juntariam ao bailado, erguendo-se da poeirenta terra ou dos repugnantes esgotos e túneis, calçando as luvas e vestindo os simbólicos trajes, abrigadas na sensibilização à agressividade testemunhada desde a nascença.
Na afirmação de um ignorado presságio bíblico – “Therefore this is what the Lord says: ‘I will bring on them a disaster they cannot escape. Although they cry out to me, I will not listen to them.’” –, Jordan Peele previne-nos de um dia que chegará compassadamente – o da desforra –, no qual o país do outro lado do oceano cujo modo de vida inspira diversos fenómenos culturais, que curiosamente emigram para Portugal, tanto para o bom como para o mau, finalmente saboreavam o sabor da igualdade de patamares. Especialmente quando comparadas nações com abismais divergências de consumo e produção. Pode-se relevar, por exemplo, o comentário realizado sobre o desmedido consumismo que se voltou a praticar insistentemente desde a rotura de Wall Street.
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Os Estados Unidos já puderam voltar ao mecânico dia-a-dia que durante anos apelidaram de essencial – “american way of life” –, marcado somente pela compra de produtos que satisfaziam a instável autoestima de cada indivíduo com esposa, filhos e um grande animal de estimação, com o intuito de fazer pirraça ao vizinho, comparando casas, carros, roupa, acessórios, hobbies, barcos, enfim, tamanhos. Aqui entraram Elizabeth Moss e Tim Heidecker, com interpretações corretamente instrumentais no vaivém não só com outra família de classe média alta, mas também, discutivelmente, num arco de “família branca vs. família preta”. No entanto, pressenti a possibilidade de estender o material um pouco mais a fim de desenvolver a dinâmica do casal além do referido arquétipo.
Já a restante turma é digna de aplausos, evidente a enorme dedicação com o respetivo par de personagens e as trocas de humor entre os mesmos, recortadas pacientemente pelo Nicholas Monsour. O espectador torna-se no hóspede e acolhe a fenomenal, traumatizada e perturbadora entrega da Lupita Nyong’o, naquela que é a melhor interpretação da carreira da queniano-mexicana desde “12 Years a Slave”. O Winston Duke, abstraindo-se sem problemas da bronca postura adotada em “Black Panther”, encarna perfeitamente o relaxamento insensível, irresponsável, embora ternurento e protetor de um marido vidrado em fúteis tentativas de supremacia monetária. Aquela personalidade brincalhona paternal extrai diversas amostras bem ajustadas do mórbido sentido de humor do seu cineasta, mas todo esse tom acaba por ser surpreendente e gradualmente desprezado.
Por muito que nos custe abdicar desse elemento do Jordan Peele desde as hilariantes sequências de “Get Out”, “Nós” não é de todo uma comédia. E a dupla Shahadi Wright Joseph e Evan Alex foram autênticos talentos beligerantes em absoluto controlo. E, para o logro de qualquer fã de terror, merecem ser sublinhadas duas distinções: a fotografia apropriadamente audaz e escura nos momentos certos, da autoria do mais recente parceiro de M. Night Shyamalan, Mike Gioulakis, e a arrepiante e inesquecível banda sonora do estreante Michael Ables, cujo currículo se estende unicamente à galardoada comédia de 2017, reminiscente aos melhores calafrios provocados pela vibe sobrenatural e intrusa de “The Shining”.
E, por falar em “intrusa”, a câmara do cineasta de 40 anos é outro subtil (enorme) acerto, procurando expor ou reduzir o impacto que o arco dos personagens têm exatamente nos mesmos, seja na forma de uma permanente desconformidade inicial em continuar naquela praia de férias, seja na mais declarada manifestação de horror e medo, especialmente através de espelhos e da distorção de clichés do género. Contudo, confesso que senti falta de mais sustos. Não de jumpscares. De sustos. Um bom filme de terror deve suscitar uma reflexão, mas também assustar com o mesmo grau de competência. Muitos elementos sinistros do filme ficarão comigo, mas senti falta de algumas mínimas pitadas de genuíno pavor.
Melhor que qualquer aspeto técnico que Peele nos ofereça, abrindo, ainda assim, diversas possibilidades para se superar no futuro, o valor de “Nós” está onde não podia haver preguiça, onde não podia haver falta de ideias e de criatividade – na sua filosofia. Como já foi discutida acima o suficiente, a objeção do filme de 2019 não é complicada, não é prejudicada por tamanha tensão social que se vive como se tem anunciado. Aliás, tal tensão apenas auxiliaria a acessibilidade do espectador a alcançar o comentário que é cautelosamente preparado aqui.
Mas, verdade seja dita, todos nós gostamos de um bom twist. E, melhor que um tradicional “Holy shit”, só mesmo um que pareça ilógico e que lentamente se absorva. Um que se estranhe e depois entranhe. Quando investidos na submersa e aterradora realidade que “Nós” nos relata, é-nos impossível desligar do furacão temático e alegórico que durante horas a fio nos desafia a pensar. Mais do que isso, que nos cativa a reavaliar as nossas fingidas magnanimidade e benignidade, a fim de nos situar nas carcomidas sandálias do outro.