Sara – a monumental e definitiva sátira televisiva portuguesa

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Depois de brindar a Europa com “São Jorge”, Marco Martins trabalha pela primeira vez na televisão… E foi assim que nasceu “Sara”, a melhor série de 2018.

Sara Moreno, uma atriz recém-quarentona conhecida pelos papéis em filmes de autor e pela particular capacidade de chorar vê-se num descarrilamento profissional e emocional quando perde precisamente a sua maior arma dramática. Na tentativa de se manter em atividade, aceita então protagonizar uma novela e inserir-se nas mais caprichosas tendências sociais.

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Sara

Marco Martins não conquistou a minha eterna admiração somente com o drama de 2017. No início do ano, a peça ‘Actores’ passou por diversos teatros. O estudo autoral, protagonizado pelo quinteto Nuno Lopes, Bruno Nogueira, Miguel Guilherme, Carolina Amaral e Rita Cabaço e que explorou a “máquina emocional que é o ator”, apresentou, para além da escritura em pedra da qualidade do trabalho do cineasta português, uma premissa excecional que, juntamente com dezenas de outras, seria eventualmente explorada num dos projetos televisivos mais ambiciosos da tela nacional. Estreando meses depois e deixando um sabor amargo proveniente da ausência futura de uma continuação.

Quando se pensava em “Sara” como apenas mais uma ótima obra da RTP, muito pouco era sabido sobre o real potencial e profundidade temática da ideia original de Bruno Nogueira (quem mais?). Com um guião da autoria do ator e humorista e da dupla responsável por “São Jorge”Ricardo Adolfo e o próprio Marco Martins“Sara” é uma coletânea de todos os podres de Portugal. Deambula sobre qualquer parâmetro da nossa fútil, desinstruída, invejosa e dividida sociedade. Sem jamais apelar à exposição tão característica do audiovisual português. Quem diria que a história de uma atriz que não consegue mais chorar conseguia abranger tudo e mais alguma coisa. É só pedir.

Sara

Temos tudo: um ator do Instagram (como o próprio Nuno Lopes gosta de descrever); um realizador de novelas excitantemente iludido; uma genérica atriz ostentadora com o sonho de alcançar os palcos e o cinema; um guru da autoajuda/life coach cheio de costumes inusitados; um realizador autoral pretensioso, autocongratulador, dependente de subsídios e “armado em Tarkovsky”; um Bob Dylan wannabe talentoso, desvalorizado e solitário; um pai distante, debilitado e em sofrimento; um agente obcecado pelas massas, cheio de tiques nervosos e intenções nefastas;  uma enfermeira simultaneamente caraterística de doces falinhas mansas e uma apatia ética e moralmente contraditória.

A lista de personagens-tipo é quase interminável. Estende-se igualmente por membros duma equipa de publicidade, de filmagens, duma moderna revista de “entrevistas” e de sessões fotográficas. E, mesmo com uma construção magnífica para cada estereótipo dos meios social, audiovisual e comunicacional, todos os personagens têm camadas, fornecem momentos singularmente engraçados, dramáticos e reflexivos. Tudo isto incluído nuns 8 episódios extremamente bem resumidos.

E, estabelecido cada personagem, a série comenta também o comportamento agressivamente oportunista dos média (entenda-se revistas cor-de-rosa), as constantes e inacreditáveis indignações sociais provocadas por um mero post na Internet, o desdém diariamente presente num ambiente disfarçado de Disney World perante os holofotes, bem como, claro, a artificialidade de produtos cinematográficos e televisivos.

Sara

Como não ficar agarrado a uma maravilha destas sabendo que, casado à brilhante sátira, está uma magnífica linguagem cinematográfica, cheia de simbólicos e estimulantes trabalhos de câmara? Somem uma fotografia e uma banda sonora no ponto e têm aqui uma magistralidade técnica. Um cumprimento total da mise-en-scène. Uma coleção que inclui desde música clássica até Xutos & Pontapés e autênticas pérolas como a percussão do Nuno Malo. Esta última, aliás, presente no genérico. Sem nada que supere, no entanto, a seleção musical daquele final. Quem viu a peça em janeiro sabe perfeitamente do que estou a falar.

E, sem quaisquer surpresas, o elenco é a cereja no topo do bolo. Marco Martins conta com os suspeitos do costume, bem como novos colaboradores, todos com o devido tempo para causarem um impacto. Falemos da irretocável Beatriz Batarda… Uau! A Sara Moreno é uma personagem clássica instantânea da cultura audiovisual portuguesa. Depois de trabalharem nas três longas-metragens do cineasta (um número injustamente reduzido, se me perguntarem), fica solidificada uma dinâmica realizador-atriz que lembra estudos de personagem como os feitos em “Ela” e “Aquarius” (não, estas comparações não são descabidas). Cheia de quebras, esgotamentos, demónios, preconceitos, oportunidades pessoais e profissionais perdidas e um total desajuste nos campos sobrevalorizados por um país, a personagem ganha o afeto imediato do público, provocando uma necessidade de partilhar aquela jornada de reavaliação e descoberta. Estudantes de representação têm aqui uma aula.

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O Albano Jerónimo está sensacional! Tudo aquilo que o personagem transmite é venenoso. É um exemplo perfeito de uma perversidade sofisticada, auxiliada por uma natureza irritadiça, esquisita e levemente monstruosa. Isto, para além de um elegante guarda-roupa negro. É um pequeno suspiro maléfico no ombro da Sara. Um diabinho que se aproveita da ausência de um anjo no outro ouvido da sua vítima. O maldito corvo.

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A Rita Blanco está novamente sólida com uma personagem divertida. Amiga da protagonista mas com diversos pontos de vista contrários aos daquela. Tal origina assim alguns debates convenientes nestes dias na nossa praça. A atriz está ótima porque está sempre ótima.

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O Nuno Lopes voltou à comédia mais declarada, e está-se a divertir bastante a interpretar um ator (digamos) totalmente oposto a si na vida real. Aquele sem qualquer tipo de noção artística que simplesmente quer ganhar o seu cachê protegendo uma imagem fútil, reciclável, inexistente…

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O Bruno Nogueira dificilmente será catalogado além de um alívio cómico. A verdade é que, sendo um enorme fã da sua carreira de stand-up comedian e desconhecendo o seu histórico de ator, foi apenas vendo ‘Actores’ que notei o lado mais negro do artista. Aqui, este interpreta um típico life coach da maneira mais brunonogueiresca possível, mostrando gradualmente a sua única faceta. Isto é, a de um homem genuinamente fragilizado.

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O António Durães, sem uma única palavra (para além das presentes nas tristes declarações existencialistas do livro narrado lindamente pela Beatriz Batarda), consegue transmitir todo o cansaço e vontade de partir. A relação com a filha, ainda que silenciosamente atribulada, é responsável por diversas cenas comoventes e pelas reflexões da série mais profundas sobre vida, tempo, família, amor e morte.

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E há ainda ótimas participações de Tonan Quito, Cristóvão Campos, Inês Aires Pereira, Teresa Faria, Filomena Cautela, Leonor Silveira e do gigante José Raposo. O único que merecia mais tempo era o Miguel Guilherme. A sua química com o José Raposo é perfeita e originária de cenas genialmente engraçadas, mas o personagem acaba por ser indiferente e o ator é demasiado talentoso para ficar reduzido àquele.

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