“The Morning Show” foi a grande aposta da Apple TV+ no lançamento da plataforma da gigante tecnológica quando poucas ideias sólidas faziam parte do seu catálogo, apesar de muitas serem as intenções.
Certo é que o esforço colocado no enriquecimento desse catálogo não tem sido extremo, tanto a julgar pela receção do público, como também pelo modo como a crítica tem recebido as novas séries e documentários.
“The Morning Show” tinha, contudo, tudo para vir colocar a Apple na linha da frente das plataformas de streaming, assim parecia. Os valores investidos na série assustaram toda a gente e muitos se questionaram o que poderia resultar de um investimento total de 300 milhões de dólares dividido à cabeça por duas temporadas.
“The Morning Show” não chegou apenas com um elenco anunciado de estrelas astronómicas, vinha ao mesmo tempo na crista da onda do movimento #Metoo e o seu conteúdo prometia causar polémica.
Estreada em novembro de 2019, “The Morning Show” é inspirada na obra de Brian Stelter, “Top of The Morning: Inside the Cutthroat World of Morning TV” e a sua história, inicialmente, gira em torno do personagem Mitch Kessler (Steve Carrell), um conhecido co-apresentador de um programa de televisão do período da manhã.
Ao longo de 15 anos, Mitch é imperador na sua posição tanto dentro da estação como no universo da programação daquele segmento e a seu lado tem a co-apresentadora e depois amiga Alex Levy (Jennifer Aniston).
A este dueto principal, juntar-se-á, mais tarde, a personagem de Bradley Jackson, a jornalista interpretada por Reese Whiterspoon, o elemento verdadeiramente desestabilizador numa estação televisiva já arrasada pelo escândalo de assédio sexual que rodeia Mitch.
“The Morning Show” tem muitos defeitos, mas foi ao mesmo tempo apanhada na possível teia do preconceito generalizado da crítica face a uma série onde a Apple mostrou o seu lado grandioso e megalómano. Basta relembrar que cada uma das atrizes principais, Aniston e Whiterspoon, receberam por cada episódio a módica quantia de 1 milhão de dólares e um pouco de urticária pode surgir – e, por outro lado, porque não?
Entrar na série com esse espírito pode prejudicar a sua visualização, mas muitos apontam o dedo à própria Apple por ter disponibilizado à crítica apenas os três primeiros episódios e a série, na realidade, não resiste de modo perfeito a essa visualização parcial.
Investida tanto em fundos como em argumento a criar um crescendo de intensidade e decidida a não desvendar de imediato os seus trunfos, o pecado e a virtude de “The Morning Show” aparentam ser um e o mesmo: o tempo que demora a construir a história.
No imediato, a série acabou por se ressentir aquando das primeiras críticas, que não foram, de todo, positivas, e o público também não reagiu de forma eufórica. Na realidade, toda a gente estava a perder uma enorme oportunidade de entrar numa montanha russa de excelentes interpretações, se se conseguisse ver para lá do brilho do ouro que a tantos ofuscou.
Não colocando de parte que “The Morning Show” pode aparentar inicialmente uma enorme superficialidade, esse sentimento lança as fundações para o que se passará depois e é por mostrar a sua versão por camadas até chegar ao seu âmago que muitos dos espetadores podem ficar pelo caminho.
O mundo da televisão é, de facto, feito deste brilho, das estrelas, das vidas perfeitas vividas, à semelhança de Alex e Mitch, em casas luxuosas com vistas deslumbrantes, dos motoristas privados, dos privilégios brancos.
O que se seguirá para lá da superfície, irá mostrar uma série e uma realidade completamente diferente daquilo que se apresenta ao espetador nos primeiros episódios. Muitas das personagens se desenvolverão grandemente após a primeira metade da série e as pessoas que se tomam por garantidas são aquelas que mais gerarão surpresa.
“The Morning Show” é uma excelente surpresa, se o espetador se permitir ver a série sem preconceitos e, mesmo assim, poderá esbarrar na questão do gosto ou do desgosto pelo seu brilho ou superficialidade aparente.
A série trabalha de modo até provocador porque em grande parte do tempo apresenta apenas a versão dos factos da perspetiva de Mitch Kessler e aborda ainda a sua tentativa de separar as águas e estabelecer uma barreira entre si mesmo e o seu tipo de assédio e um assédio mais condenável, como o de gostar de menores.
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Este jogo inicial estabelece um Mitch inocente para mais tarde ir desvendando a versão das vítimas e a série toma tonalidades muito diferentes daquelas que os detratores eventualmente lhe poderão atribuir.
Coloca muito no centro do jogo a subtileza do assédio e os enormes desequilíbrios gerados na luta pelo poder e posicionamentos tóxicos dentro da hierarquia da televisão. Uma desculpabilização, o fechar os olhos a comportamentos errados, mas habituais, o não falar sobre os assuntos e continuar porque não se pode renunciar a um determinado tipo de vida ou estatuto são temas que recorrentes ao longo de toda a série.
“The Morning Show” não é uma série óbvia e quando, por exemplo, chega à edição dos Emmys deste ano, tinha sérias possibilidades de trazer dois prémios quase garantidos para casa, não fosse a surpresa Zendaya, que retiraria o tapete à eterna queridinha da América Jennifer Aniston.
A vitória de Billy Crudup na categoria de Melhor Ator Secundário resgataria a honra do convento, mas não deixa de saber a muito pouco em termos de retorno e reconhecimento a uma série que apostou muito para lá das luzes da ribalta e não ganhou. Os números do sucesso ou fracasso da série a Apple nunca revelou, por isso a relação que o público estabeleceu em termos de visionamentos também não está garantida.
A maioria estará de acordo que a interpretação de Billy no personagem de Cory Ellison, o alucinado diretor da estação televisiva, é de se lhe tirar o chapéu, mas a sua presença inigualável na série não consegue, mesmo assim, ofuscar o portentoso elenco de atores secundários.
O que se passa nos bastidores acabará por ser prejudicado por, por exemplo, no cenário principal se encontrar uma Reese Whiterspoon desinspirada e apagada e a quem deveria ter-se beneficiado um pouco pelo menos no aspeto físico, porque aquele cabelo artificial prejudicou ainda mais uma prestação já de si feita de estereótipos e tiques que Reese já carrega de outras séries – convenhamos que é possível que a sua omnipresença este ano em tanta televisão possa prejudica-la mais do que beneficiar.
No centro deste artigo de opinião, colocar-se-ia a enorme atuação de Jennifer Aniston, que apostou todas as suas fichas em “The Morning Show”. De certa forma, entre a fama granjeada por “Friends” e a atualidade, a atriz não foi afortunada nos papéis que interpretou e, apesar de ser a eterna Rachel, não se pode dizer que tenha estado em destaque ou sido desafiada nos seus talentos.
Certo é que a personagem de Alex Levy, na sua aparente frivolidade, se revelará uma imprevisível mulher de meia idade que tenta a todo o custo sobreviver, muito longe daquilo que se espera dela, mas, acima de tudo, que tenta viver aquilo a que se negou nos últimos anos.
É o resgate da Alex Levy de uma vida vivida em aparência e o resgate da carreira de Aniston e a atriz entrega tudo o que tem, mostrando em Alex todas as nuances de personalidade que poderia, muitas vezes em apenas uma única incrível expressão.
Tivesse este ano sido outro, talvez Aniston levasse para casa o prémio de Melhor Atriz deste ano nos Emmys, não fosse a excelente concorrência de Zendaya, em cuja “Euforia” também se transformou e aproveitou para se relançar como atriz, indo mais além daquilo a que todos se haviam habituado.
Se Zendaya interpretou o seu papel da maioridade e ganhou, Aniston terá de esperar um pouco mais e continuar a apostar as suas fichas, esperando que outras oportunidades se possam seguir a esta.
No seu todo, “The Morning Show” é uma excelente série, sofrendo, por vezes, daquilo que parece ser desorientação, mas quem poderá destrinçar por entre todo o caos que se lançará na vida dos seus personagens? Se esta montanha russa de acontecimentos alucinantes parece exagerada, esperar-se-á que tenha sido intencional e não apenas um modo de esconder as suas fraquezas. Se assim foi, pelo menos à autora do artigo parece ter sido bem-sucedida, especialmente no seu episódio final – de que não se revelará pormenores, mas de que se confessa ser a apoteose merecida.
Um elenco sólido e coeso, coadjuvado por excelentes atores secundários, um argumento nem sempre brilhante, mas de que o seu elenco consegue resgatar mesmo nos momentos mais frágeis, uma realização muito presente e intensa – como esquecer o episódio candidato à melhor realização nos Emmys, “A Entrevista”?
A mestria da mão de Mimi Leder confere profissionalismo e sabedoria a “The Morning Show”, nem sempre lhe confere a espontaneidade e liberdade que mereceria, por isso pode, por vezes, sentir-se que há uma mordaça formal que não permite mais criatividade, mas esse sentimento não impede que seja excelente entretenimento.
Entre virtudes e defeitos, “The Morning Show” consegue ser uma grande surpresa para quem esteja pronto a se surpreender e, por isso, o espírito aberto à mensagem da série é importante. Igualmente importante é manter o espírito aberto a quem nem sempre a forma será consentânea com o conteúdo, mas olhar para lá do que parece óbvio permite descobrir uma das melhores séries atualmente no universo do streaming.
“The Morning Show” está disponível na Apple TV+