Nunca vimos um filme como Black Panther — não só nos deparamos com uma civilização inteira construída a partir do material que constitui o escudo do Capitão America, mas também com um gigantesco espetáculo do cinema de super-heróis populado com um elenco 95% afro-americano. Um filme que de alguma forma consegue fazer-nos sentir parte duma sociedade utópica mas simultaneamente no nosso mundo.
Black Panther é diferente. É o primeiro filme de super-heróis que flui com um genuíno sentimento de cultura e identidade, memória e musicalidade. Não aborda temas como poder e subjugação no sentido subcontextual ou abstrato. Trata dessas ideias com relevância oferecendo arcos de personagens nas quais estas ideias têm a sua fundação assim como a história dessas ideias formou o universo em que o filme se encontra.
Assim sendo, nunca houve um momento em que Black Panther não se tornaria num monumento para a representação. Mas o realizador/argumentista Ryan Coogler não fica por aí. Black Panther é dos filmes da Marvel visualmente mais assombrosos e únicos. O seu sucesso não se encontra apenas nos visuais, mas também no uso de cor que nunca é meramente cosmético.
É um orgulhoso trabalho de Afro-futurismo. Um entretenimento multifacetado que usa a realidade imaginada do universo como reflector da realidade da experiência do povo afro-americano e africano na execução de um filme que claramente permite a pessoas dessa etnia verem-se a si mesmas no grande ecrã.
Coogler criou um filme em que qualquer um se identificará com as personagens presentes. Um feito que todo o público poderá apreciar e deverá congratular. Mais um filme que aprofunda os temas explorados pelo Universo Cinemático da Marvel, que consegue trazer realismo à saga sem esquecer o nível cósmico da ameaça que cobre esse mesmo universo.
Black Panther começa com um breve prólogo que conta a história de Wakanda, localizada algures na fronteira entre Quénia e Namíbia. Mas o que parece ser um lugar sem interesse de alguma natureza é, na verdade, uma próspera socidade que é negligenciada pela hegemonização colonialista responsável pela exploração dos paízes vizinhos.
O povo de Wakanda protege os seus recursos naturais assim como as suas culturas nativas de uma forma curiosa… Fazendo parecer ao resto do mundo que não possiu nenhum dos dois. Quando o príncipe T’Challa (Chadwick Boseman) regressa a casa após o falecimento do seu pai em Captain America: Civil War, pronto para tomar o seu lugar no trono, embora reconheça que o mundo está em constante mudança, o príncipe está inclinado a seguir a tradição.
É compreensível a razão pela qual T’Challa escolheria lutar por manter Wakanda em segredo. Assim que lá chegamos, é um lugar fabuloso, belo e sem igual. Apesar de desafiante na sua utilização de pouca luz nas sequências nocturnas, a cinematógrafa Rachel Morrison filma o país de forma tão vibrante e cheia de vida que é genuinamente difícil acreditar que nem um único plano foi filmado em África. Das ondulantes planícies aos exagerados rinocerontes, ao movimentado mercado da cidade e céus saídos de um sonho. A nação de Wakanda é quase tão bem concretizada como as cinco tribos que nela habitam.
Esta é uma história na qual os personagens são reais quer estejam ou não no ecrã. Isto aplica-se à recém viúva Rainha Ramonda (Angela Bassett), a matriarca agitada sobre o futuro da sua nação que exibe um guarda-roupa impresso a 3D, com inspirações em Zulu e futuro-chic. Aplica-se igualmente a Shuri (Letitia Wright), a jovem e brilhante princesa que cria toda a tecnologia de vibranium que faz a nação prosperar.
Também a Nakia (Lupita Nyong’o), a independente guerreira, ex de T’Challa, que sempre diz ao rei a mais pura verdade. Nakia lidera as forças especiais de Wakanda, um grupo de ferozes e temíveis guerreiras chamadas de Dora Milaje. A Okoye (Danai Gurira), a mais temível de todas as guerreiras. Numa cena, usa uma peruca como arma antes de começar uma sequência de acção tão brilhante que trará à memória Crouching Tiger, Hidden Dragon. E W’Kabi (Daniel Kaluuya), um tenso defensor da nação com desejos conflituosos. Estas são as pessoas que nunca estiveram numa situação de opressão. Pois torna-se claro que quem tentasse que assim fosse estaria em maus lençóis.
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Acima de tudo isto no entanto, encontramos uma maravilhosa raridade nos filmes da Marvel, um verdadeiro e assombroso vilão. É Michael B. Jordan que dá vida a Erik “Killmonger” Stevens numa interpretação arrogante que supera a vivacidade que o ator trouxe a Creed.
Erik é um Wakandiano exilado, nascido e criado na América que se tornou mercenário, vivendo para matar. Saliva pela oportunidade de vingar as históricas e contemporâneas injustiças que perseguem as pessoas de raça negra por todo mundo. Erik ressente o facto de Wakanda não se envolver nos assuntos de escravidão e imperialismo. O seu objetivo é usar o poder da nação para mudar essa narrativa da forma mais drástica.
Este é um indivíduo que literalmente cobre-se com a morte, marcando o seu corpo com uma cicatriz queloide por cada vida que tomou. No entanto, T’Challa reconhece a sua raiva. Boseman revela a simpatia no seu interior quando o estranho vindo da Califórnia aparece e desafia-o para tomar o trono.
O Black Panther entende de onde vem o sentimento de Killmonger, mesmo que apenas o faça até certo ponto. É deveras fascinante ver como um filme deste tamanho enfrenta a dinâmica complexa entre africanos e o povo deles extendido. O vilão fala a língua dos escravos e dos oprimidos, enquanto que o herói quer reescrever esses papéis do zero. A fricção entre as suas diferentes ideologias quanto ao verdadeiro significado de “poder” é manifestada através de um conflito de personagens que sentimos de forma realista. Acabamos por esquecer quem ganha ou perde, assim como deixamos de ver a estrutura óbvia de Macbeth em desenvolvimento e acabamos por nos interessar, tal como o próprio filme, pela questão maior. Ser o Black Panther e tornar-se o Black Panther são duas coisas muito diferentes.
Mas mesmo sem lasers gigantes a disparar para o céu… Mesmo sem exércitos de aliens a corer pelas ruas. Mesmo sem nenhum dos personagens sequer aludir a Thanos… Mais uma vez a Marvel conta uma boa história. Uma história que tem as suas próprias forças sem precisar de apoio dos filmes adjacentes para ser compreendida ou disfrutada. E mais ainda, a moeda de troca cultural do filme é, em grande parte, derivada do facto deste ter um assento tão cobiçado, Black Panther é tão importante para a representação negra, em parte por falar a linguagem codificada do maior franchise de cinema do mundo.
Mesmo assim consegue dar-nos a guarnição esperada (exemplo: Cameo do Stan Lee) entre outros pilares de referências que reconhecemos da Marvel, o que ajuda a demonstrar que o franchise, assim como todo o género, pertence a todos. Coogler inclina-se nas específicidades da cultura Wakandiana, com um extasiante guarda-roupa e uma luxuosa cinematografia. Estas complementam-se de forma magnífica, tendo também a música como um destaque sem igual.
Mais uma vez, a Marvel dá voz ao realizador em chefia e traz-nos algo que está longe de ser uma genérica poça remexida de algo visto antes. O compositor Ludwig Göransson oferece uma peça sem precedentes. Misturando percursões da África do Sul e Senegal para formar a base da sua composição, Göransson cria um som impossível de ignorar ou ao qual ficar indiferente que vibra com ansiedade e poder. E para remexer ainda mais, o filme acrescenta umas quantas músicas originais com crédito de Kendrick Lamar e companhia.
E ainda temos as sequências de ação, algo que é de louvar 90% das vezes nos filmes da Marvel. Estes tornaram-se não só o monumento de filmes de super-heróis, mas também o exemplo a seguir no que toca à ação moderna no cinema. Black Panther dá-nos ainda mais razões para que assim seja. Tem talvez o maior número de sequências de ação dos 18 filmes no MCU e todas elas tão diferentes. Dada a sofisticação de Coogler na forma como conta as suas histórias, e a fisicalidade visceral que nos trouxe em Creed, aqui temos uma satisfatória surpresa.
A coreografia em Black Panther é coerente, limpa, eficaz e brutal com cada impacto. Seja este mão-a-mão ou com o empunhamento de armas. Desde uma perseguição de carros na Coreia do Sul cheia de adrenalina à climática luta cheia de vivacidade e com acção tão realista que talvez se destaque como dos momentos mais credíveis do filme, apesar do cenário envolvente (o qual não será aqui revelado).
Há bem mais elementos que funcionam do que aqueles que não resultam. Mas estes últimos existem na mesma. No fim de tudo, há arcos que não têm um final conciso e parecem ter sido esquecidos. Questões levantadas ao longo da narrativa e pontos cruciais da história e da mitologia que são deixados em aberto.
Contudo, mesmo ao nível mais artificial, Black Panther é um sucesso. Continua a ser uma eletrizante e bem concretizada história acerca de auto-determinação, contada com confiança e com razão de ser. Acreditamos em T’Challa, acreditamos em Wakanda, e continuamos a acreditar na importância deste universo.
Com 10 anos de vida, é difícil um estúdio se encontrar num estado tão forte de prosperidade. Tal como é difícil para um bom homem ser rei. Mas difícil não é impossível.