A última vez que estivemos frente a frente com Rue (Zendaya) e todo o conjunto de maravilhosos jovens atores que compõem “Euphoria”, a efervescente série da HBO, corria o distante ano de 2019, estávamos em agosto.
O público parecia estar a despedir-se de Rue, novamente numa espiral descendente de autodestruição mascarada de musical da Broadway. Ficou a dúvida de qual seria o destino da jovem ao retomar o seu percurso pelas drogas e, depois de a pandemia se ter instalado, de qual seria o destino da segunda temporada.
A dúvida não seria se chegaria a estrear, mas sim quando e, como meio de contornar as limitações impostas à produção da série “Euphoria”, Sam Levinson gravou dois episódios especiais, um deles em setembro, e que estreou a 4 de dezembro na HBO Portugal, “Trouble Don’t Last Always”.
Um segundo episódio está na calha, mas ainda não tem título nem data de estreia e ambos servem o propósito de “entreter” os fãs de uma das mais surpreendentes e honestas séries estreadas nas plataformas de streaming. Não foi por acaso que Zendaya ganhou o Emmy para melhor atriz em 2020 e volta para provar que aquele não foi um caso isolado.
Dos muitos caminhos que a série poderia tomar, o caminho pelo qual optou por caminhar devido às restrições parece ser o mais arriscado e, pelo resultado, uma aposta totalmente ganha.
“Trouble Don`t Last Always” não tem praticamente atores, para além de Zendaya e Colman Domingo, e não tem muito cenário ou efeitos especiais, fruto, claro, das restrições que a época atual implica.
Durante uma hora de episódio especial, tanto Zendaya como Colman apresentam uma interpretação a la Tarantino de se lhe tirar o chapéu e provam ser, para além de belíssimos atores individuais, estabelecer uma enorme cumplicidade que lhes permite brilhar ainda mais no pequeno ecrã.
Trata-se de uma longa e profunda conversa num restaurante, um típico diner americano, na véspera de Natal, em que Rue aparece novamente sob o efeito de drogas e o seu padrinho a tenta ajudar na busca por um caminho alternativo.
Longe da verdadeira euforia de série, o episódio arrisca desacelerar o ritmo aproveitando as limitações para refletir nas razões pelas quais as drogas parecem uma opção e para dar o palco por completo a dois atores brilhantes que aproveitaram por completo a oportunidade.
Ao invés de se assistir a um aborrecido solilóquio de julgamentos e moralidade, Ali e Rue discutem as possíveis razões para se fazer o que se faz na vida, os arrependimentos, a responsabilidade por tudo aquilo que se faz e mesmo as tentativas de remendar algum do passado.
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O papel de Rue é ser igual a si mesma, numa atuação genuína e honesta, que vem reforçar ainda mais o percurso de Zendaya. Rue ouve na maior parte do tempo aquilo que o amigo Ali tem para dizer, muito porque acabou de tomar a sua dose na casa de banho, mas quando digere toda a informação, aquilo que tem para transmitir é de tal forma desarmante que se percebe o enorme trabalho de construção dos personagens e da tensão (amistosa) entre ambos.
É um belíssimo episódio sobre a possibilidade da redenção, da necessidade de haver honestidade total, mesmo que seja para admitir que as drogas permitiram impedir um suicídio. Ao mesmo tempo, a atuação de Zendaya é de tal modo significativa, que a admissão das fraquezas de Rue dão espaço à tolerância e à compreensão.
Filmado em Burbank, no Frank`s Restaurant, que serviu de palco também a “Em Parte Incerta” (“Gone Girl”) e “Mad Man”, apresenta o cenário perfeito para o isolamento de duas pessoas solitárias, longe do mundo, mas magoadas pelos seus atos, pelas traições, pelas mentiras, à procura da cura.
Mais uma vez, a banda-sonora é perfeita, nos parcos momentos em que intervém, uma primeira vez para enquadrar a relação de Rue com Jules, com Moses Sumney a entoar o seu cântico quase clerical “Me In 20 years”, e, mais tarde, já no desfecho, com uma versão do “Ave Maria” por Labirinth, o alter ego do produtor britânico Timothy Lee McKenzie, autor da banda-sonora da série.
O espetador pode esperar ficar hipnotizado e suspenso das palavras de Rue e Ali, enquanto torce ardentemente para que Ali consiga restabelecer contato com a família, com quem acaba por conversar ao telefone durante a pausa para um cigarro.
Na realidade, tanto o cenário do restaurante, como o conteúdo da conversa, muito próxima da espiritualidade da época (duplamente espiritual, tendo em conta o tempo para reflexão a que a pandemia forçou a maioria do planeta), quase que gritam para que não se acredite em nada disto.
O episódio que começa com a vida de fantasia de Rue e Jules juntas, um desejo, uma necessidade de felicidade, prossegue num tom de fantasia para um encontro entre duas almas perdidas que aparentam não estar ali.
É como se este episódio não se passe nunca na vida real, mas tenha lugar apenas nas melhores intenções e desejos dos seus intervenientes, deixando a mesma dúvida com que o espetador começa o episódio. Terá este encontro acontecido, será esta conversa real, é este apenas um sonho dentro do sonho?
O que é certo é que se num primeiro momento é surpreendente a opção tomada para “Trouble Don`t Last Always” e o espetador pode ficar a suspirar pelo espírito frenético da série, é muito possível que tenha de restabelecer um novo contato com a série ou mudar o seu ângulo de visão.
Quando Moses Sumney propõe uma visão para um cenário daí a 20 anos, é inevitável lembrar o momento em que Rue, do fundo da sua extrema honestidade e vazio emocional, expõe a Ali que duvida que vá estar por cá durante assim tanto tempo.
“Trouble Don’t Last Always” é um maravilhoso pedaço de televisão, talvez não muito óbvio, especialmente tendo em conta a expectativa gerada pela série numa primeira instância. É uma aposta ganha, um risco que compensa, e que no contexto das difíceis circunstâncias, reforça ainda mais o trabalho mostrado anteriormente.
Definitivamente, a ver, um dos momentos mais memoráveis que a televisão produziu este ano.