Concluindo esta pequena coletânea de artigos dedicados ao décimo aniversário de “Breaking Bad”, eis que chegamos onde eu queria – falar de um dos melhores antagonistas da televisão. Tal como o químico Walter White e o traficante Jesse Pinkman, o mais genial criminoso da série da AMC merece igualmente um estudo, demonstrativo da sua profundidade enquanto personagem.
Se há coisa que distingue Gustavo Fring dos restantes antagonistas da Televisão ou até mesmo do Cinema (já que falamos de uma série com uma linguagem altamente cinematográfica), é toda a sua ambígua origem (que sofre comparações à misteriosa mala de “Pulp Fiction”, por parte do criador Vince Gilligan), composta por aquela interessante constituição moral, motivações incertas, fisicalidade e a inconfundível prática criminosa.
O arco do mafioso afro-chileno não nos informa apenas sobre este mesmo, mas também acerca do lado mais defeituoso do protagonista, assim como os padrões do crime organizado do violento e sujo mundo de “Breaking Bad”.
Vingança servida fria
Ao longo da série, para além de nos depararmos com a dura transformação de Walter, aprendemos cada vez mais sobre Gus e quão o próprio negócio molda a sua personalidade. Sob determinados pontos de vista, Gustavo Fring está ainda longe de ser o antagonista principal do neo-western televisivo. Depois de aparecerem figuras como o Krazy-8 e a Família Salamanca, composta por um tio destrutivo e os respetivos três sobrinhos psicopatas, conhecer o Gus em ação (ou antes, em inação), para além de narrativamente diferenciado, é uma lufada de ar fresco, tendo em conta que raramente observamos um personagem que consegue transmitir a exata conduta criminal diariamente, acompanhada por uma elegância característica e a dose certa de malícia, arrogância e, acima de tudo, autoridade.
Aliás, são os últimos traços descritos que tornam Gus no homem que conhecemos inicialmente. Quem sabe se não torceríamos por ele se o tivéssemos conhecido antes de Walter? Se o tivéssemos acompanhado desde as pobres ruas do Chile durante o regime de Augusto Pinochet até à década de 80 no México. Como descobrimos posteriormente, em 1986, numa reunião com Don Eladio, o maestro do Cartel de Juárez, atingido por um ou outro comentário desagradável, ordena a morte do parceiro e amigo de longa data de Gus – o experiente químico Maximino Arciniega. Hector Salamanca prime o gatilho, dando à luz o ódio vitalício de Gustavo pelo mafioso mexicano. Fosse qual fosse o historial criminoso de Gus ou as possíveis ligações ao regime ditatorial chileno, Don Eladio estava ciente de tal, tatuando-lhe um dos seus piores dias.
O Don Eladio está morto! Os seus capos estão mortos! Vocês não têm mais ninguém por quem lutar. Encham os bolsos e vão em paz. Ou venham lutar comigo e morrer!
Eles todos, Hector. Don Eladio, Don Paco, Cesar, Reynaldo, Ortuno, Cisco e Luis Escalara. Todos mortos!
Conhecendo o passado trágico de Gus, sabemos que existem claros motivos naquela misteriosa mente para uma longa jornada de vingança. No entanto, ao contrário da Noiva em “Kill Bill”, a regra “sangre por sangre” aplica-se de forma bem mais paciente. Em vez de atacar desesperadamente no dia seguinte, Gus segue todos os passos ordenados por Don Eladio até poder dispensar aquela parceria, alcançando o estatuto de máximo Lord da Droga do sul dos Estados Unidos. É então que, concretizado o assassinato de Eladio e seus associados, com Hector altamente debilitado numa cadeira-de-rodas, Gustavo executa a definição de “vingança servida fria”. No entanto, como sabemos, não é isso que acontece. A explosão provocada por Walter e Hector naquele quarto é um dos raros momentos que me faz simultaneamente sentir euforia pela vitória do protagonista (derivado ao ódio pelo antagonista), mas também pena por Gustavo não alcançar devidamente a vingança que pretendia.
Antónimo de Heisenberg
Perpetuado com demónios assustadores, Gustavo consolida-se e torna-se num dos homens mais apáticos do mundo do crime de “Breaking Bad”. Para além de se mostrar totalmente capaz de matar empregados para intimar quem deseja, é, acima de qualquer outra coisa, tudo o que Walter White deseja irracionalmente ser. Gustavo Fring não é muito mais que um Walter na sua melhor versão. Sendo, no entanto, o oposto do mesmo. Mesmo impressionado com o profissionalismo de Gus, aparte a lenda na qual Heisenberg se torna no fim da sua jornada, Walter White não tem (nunca teve, aliás) o que é necessário para se tornar num verdadeiro Lord da Droga. Por diversas razões.
Como se pode confirmar pela sua ascensão (pessoal e criminosa), Walter é alguém involuntariamente colocado num mundo que desconhece totalmente. Mas, apercebendo-se do poder que tem sobre o jovem discípulo e até o advogado, aumenta indescritivelmente a sua vontade de ter enormes pilhas de maços de notas gordos, cometendo atrocidades cada vez mais difíceis de justificar. Atrocidades estas apenas realizadas ou encomendadas para satisfazer o seu ego infinitamente faminto. Neste enorme processo de cinco temporadas, por muito que seja o nosso afeto pelo anti-herói, reconhecemos que a infantilidade que o leva a comprar grandes carros e um bonito apartamento num abrir e fechar de olhos é aquela que não permitiria a Gus ter o seu Império. Ao contrário do doente oncológico, Gustavo não tem a intenção de revelar à vizinhança quantos zeros tem a sua conta bancária.
Vê também: Walter ‘Heisenberg’ White – violência e a perda da insignificância
Um homem fundador de uma linha de gigantes lavandarias e de uma cadeia de fast-food à base de uma receita caseiramente sul-americana de frangos tem o dinheiro que quiser. Existindo muito mais dinheiro a circular na conta de Gustavo Fring, é através do investimento em campanhas de reabilitação de agarrados e à semelhante dose de doações que a mínima suspeita criminosa é absolutamente eliminada.
O que é que um homem faz, Walter? Um homem sustenta a família. Quando se tem filhos, tem-se sempre família. Eles serão sempre a nossa prioridade, a nossa responsabilidade. E um homem … um homem sustenta-os. E ele fá-lo mesmo quando não é apreciado ou respeitado … ou mesmo amado. Ele simplesmente aguenta e fá-lo. Porque ele é um homem.
Se tentares interferir, isto torna-se num problema muito mais simples. Eu matarei a tua mulher. Eu matarei o teu filho. Eu matarei a tua filha pequena.
Planeando ameaças ou dando definitivas lições de vida a Walter, Gus é quase como um indesejado mestre. Apesar de posteriormente ameaçar seriamente a família do químico careca, Gustavo foi fundamental para o estabelecimento do código moral do personagem principal, assente no código siciliano tão presente em filmes clássicos de máfia – “Tudo pela Família. Nada contra a Família.”. Definindo o verdadeiro propósito da vida de um homem e assegurando a presença de Walter na sua organização, oferecendo uns irresistíveis 3 milhões de dólares por 3 meses do seu tempo.
Conduta profissional e Capitalismo
Fica mais que solidificado o restrito profissionalismo de Gustavo. Mas, como qualquer atividade excessivamente praticada, as consequências surgem inevitavelmente. Ou seja, como já disse, a maneira como Gus controla e dirige a sua vasta companhia é o total oposto da qual idiotas como o Badger ou psicopatas como o Tuco Salamanca fariam. O primeiro é motivado pela melhor moca que pode apanhar. Por outro lado, o segundo é um maníaco motivado pelo estúpido impulso e constantes ameaças. Se há coisa que distingue ainda mais Gus dos restantes criminosos de “Breaking Bad” é todo o seu pensamento e ética profissional, também crítica ao corporativismo a capitalismo americano.
Pensemos desta maneira. O Gus aborda o tráfico de metanfetaminas como um negócio idêntico a qualquer outro. No entanto, o debate feito aqui não é o da legalização das drogas, mas sim do comportamento de homem motivado pelo lucro acima de tudo. Se uns reles traficantes apenas usam o medo como a sua melhor arma, o Gus, para além do seu impecável disfarce, é igualmente a personificação da eficiência. Um homem que repugna os animais do mundo da droga, que “investiga todos com quem trabalha” e que “não usa o medo como uma motivação”. Bem, mais ou menos. Quando falamos em motivação, geralmente lembramo-nos de todas as vezes que o Walter comete horríveis atos como envenenar o pequeno Brock. Justificando-as sempre com a segurança e bem-estar da família.
Vê também: Jesse Pinkman – perda da inocência, martírio e ressurreição
Similarmente, Gustavo, através da sua dureza incomodamente reservada, aborda a morte de um empregado como um problema logístico que põe apenas em causa a funcionalidade do seu negócio. Não um moralmente voraz. Vestindo a bata vermelha com uma calma sinistra, cortando a garganta do seu guarda-costas com um x-ato unicamente para assustar quem o desobedece, e despindo a bata já ensanguentada com a mesma serenidade, Gus demonstra ser o líder mais radical de uma organização fundada no capitalismo – “o máximo lucro através de quaisquer meios necessários”.
Este produto é a droga do futuro.
Pollos Hermanos, onde qualquer coisa deliciosa está sempre a ser cozinhada.
A conclusão é a seguinte. Mesmo Gus conseguindo concretizar o quase impossível na economia suja de “Breaking Bad”, acontece o que já foi mencionado. Primeiro, percebemos facilmente que este se trata de um homem solitário, sem os entes queridos à sua volta. Provavelmente o que acontece entre Skyler e Walter na quinta temporada seja o mesmo que ocorreu muito antes entre Gus e a família. Segundo, observamos a decadência emocional de um homem apaixonado pelo seu negócio. Torna-se, assim, em alguém que vive monotonamente a favor de uma satisfação capital insípida. Terceiro, mas não menos importante, estudamos a dualidade entre duas caras. O simpático, generoso e sorridente filantropo possuidor de clientes satisfeitos; e o criminoso impiedoso e incontornável que simplesmente perdeu a humanidade dentro de si.
Nos seus últimos segundos, Gustavo Fring não é visto a chorar por não voltar a ver a mulher ou os filhos, mas sim a preocupar-se com o seu bonito fato e a endireitar a gravata desfeita.