“Locke & Key”, baseado na novela gráfica, foi recentemente confirmado para uma segunda temporada. Mas quanto vale a primeira?
O modelo de binge watching da Netflix é não só único como também extremamente bem sucedido. Costumo dizer que várias séries requerem mais do que um episódio para demonstrarem o seu verdadeiro valor. O problema do típico formato da TV a cabo, na qual temos apenas um episódio por semana baseia-se no facto de que, se o primeiro episódio não for marcante, o espetador ou a grande maioria não volta a ligar o canal na semana seguinte. Já a Netflix não dá essa escolha ao espetador, sendo que no fim de cada episódio a plataforma começa uma contagem decrescente para o episódio seguinte. É uma bomba relógio, e o espetador que talvez até não tenha achado o primeiro episódio nada de especial, acaba por se ceder à pressão e vê mais um episódio, e assim por diante.
Contudo existe uma falha neste sistema, pelo menos a meu ver. O conteúdo, consumido todo de uma vez ou ao longo de alguns dias, acaba por não estar todas as semanas a relembrar o título ao espetador. Se num canal da TV como a AMC, a série precisa de um “Anteriormente em Walking Dead”, um original da Netflix recusa-se a sequer usar esse termo. A própria plataforma já espera que o espetador consuma o conteúdo de forma rápida.
Isto está no nosso ADN hoje em dia. Fazemos parte da cultura do scroll interminável, numa geração cujo tempo de atenção parece limitado a stories de Instagram. A Netflix entende isso, e consegue puxar este povo a consumir as suas séries de rajada. Porém, no que toca a sustentabilidade, não são muitas as séries deste estúdio que permanecem nas bocas do mundo. Entre Stranger Things, Sex Education, Orange is the New Black e mais recentemente The Witcher, perdem-se outros vários títulos, alguns de qualidade e outros sem identidade. A verdade é que o facto de estas séries serem vistas num curto período de tempo também torna o seu período de digestão um tanto curto e, a não ser que a série seja uma obra prima ou tenha grande personalidade, esta acaba por se tornar apenas mais uma produção da emissora que cada vez mais parece desesperada em encontrar o seu próximo sucesso ao nível de “Stranger Things”.
E é neste contexto que nos surge a nova aposta da Netflix “Locke & Key”. Baseada na banda desenhada escrita por Joe Hill, a história segue a família Locke composta por Nina Locke a mãe, Kinsey e Tyler os filhos adolescentes e Bode o filho mais novo. Estes mudam-se para a antiga mansão do seu pai após a sua morte. Contudo esta casa está repleta de chaves mágicas que envolvem os filhos de Nina numa aventura cheia de mistério.
O ambiente da série é repleto de mistério à medida que os Locke descobrem os segredos da mansão. Cada chave tem um poder especial, desde abrir portas para qualquer local até a uma chave que permite entrar na mente de alguém. É na descoberta destas chaves e na construção do universo que se montam os primeiros episódios numa série cujo universo se demonstra mágico e promissor.
As personagens suportam muito bem este tipo de conteúdo. Kinsey e Tyler não começam a história como os típicos irmãos mais velhos que andam sempre às turras. Pelo contrário, existe um nível de confidencia e amizade natural entre ambos que achei muito boa e interessante. Tyler, cuja reputação antes da morte de seu pai era a de um miúdo famoso, tem de aprender a nivelar a sua responsabilidade para poder ajudar a sua família devido à morte do seu pai. Kinsey, contudo, muito mais introvertida que o irmão, acaba por ter mais dificuldade em ultrapassar o recente trauma. Quando posta em confronto com novas situações sociais, esta esconde-se com receio de magoar os que a rodeiam, ou pior desiludi-los. Este estereótipo é usado em diversas séries para Young Adults.
Ainda assim gostei da forma como a série trabalha o aspeto introvertido da personagem e como o desconstrói à medida que a personagem descobre as chaves. No meio disto tudo temos Bode, o irmão mais novo. É maioritariamente através dele que a série apresenta boa parte do seu mundo mágico já que este ainda tem uma semana em casa antes de iniciar o seu tempo escolar, o que lhe permite explorar a propriedade da mansão e encontrar as diversas chaves. É através dele que descobrimos a vilã Dodge, escondida no poço da mansão. A sua introdução é misteriosa, escondida no fundo do poço e rodeada de rochas o espetador consegue distinguir a sua forma mas não o seu aspeto. Assim a série consegue criar bastante suspense para a inevitável revelação da vilã.
Os efeitos especiais também me surpreenderam na grande maioria. O CGI utilizado nas cenas de fantasia foi muito bem trabalhado, em especial no primeiro episódio no qual existe uma sequência dentro de um espelho que brinca com reflexos distorcidos de forma muito inteligente.
Em suporte dos efeitos, o design de produção é sem dúvida a melhor parte da série, em especial no que toca às cenas que envolvem a chave que permite entrar na mente das personagens. Cada personagem tem direito a um cenário diferente, cada um mais inventivo que o anterior.
Após ler algumas comics contudo, confesso que o visual da série, apesar de incrível, poderia ter sido um tanto mais arriscado. Talvez seja o estilo mais grundgy e western do material original, contudo a banda desenhada apresenta-se mais crua e criativa, sem receio de mergulhar no lado negro da fantasia. Já a série, acaba por tornar este material mais pesado e passa a violência a pano limpo. O resultado é uma série de fantasia com um universo interessante mas com potencial para muito mais.
“Locke & Key” é uma boa série, contudo o seu universo mágico a par de uma ótima produção servem apenas como pano de fundo para uma história que trabalha personagens interessantes como os típicos personagens de qualquer série adolescente da CW. A maior falha desta série é na minha opinião a sua vilã. Apesar de uma ótima cena de introdução, assim que esta entra em cão a personagem perde peso e presença, numa performance cheia de maneirismos típicos de um vilão cartoonesco. Além disso, Kinsey e Tyler parecem despreocupados com a vilã até ao sétimo episódio da série.
[NOTA: Pequeno spoiler do início do primeiro episódio apenas no parágrafo abaixo.]
Apenas Bode parece importar-se com o grande perigo, que acaba por não ser tão preocupante como o vilão secundário da série, o assassino do seu pai, Sam Lesser. Desprovido de poderes mágicos, Sam tem um cárater e vinculo emocional com os protagonistas muito mais forte do que qualquer cena com Dodge, o que torna a presença de Sam muito mais assustadora do que a vilã principal.
A banda sonora também me incomodou imenso. Ao invés de se focarem na sua banda sonora original, a série prefere encher os episódios com diversas músicas entre os estilos pop e rock. Além disso, a letra de diversas músicas da série acabam por expor o que as personagens estão a sentir o que retira parte do peso das cenas em questão. Numa série em que fantasia é a grande aposta, seria de esperar que a sua banda sonora traduzisse a mística deste universo.
Porém, a série permanece interessante do começo ao fim, e move-se a um ritmo acelerado. No meio de dez episódios não há muito espaço para empatar a história, portanto não foi muito difícil permanecer colado ao sofá ao longo de cada episódio. Fica o desgosto de podermos ter sido presenteados com uma história mais arriscada e talvez mais fiel ao material original. Talvez se isso tivesse acontecido, tínhamos nas nossas mãos uma série cujo sucesso poderia rivalizar o de “Stranger Things”, contudo parece que esse título irá permanecer como o “rei da Netflix” já que após pouco mais de um mês depois da sua estreia, já são poucas as pessoas que comentam sobre esta título.
É difícil ser bem sucedido numa selva de binge watching, contudo com um bocadinho de personalidade acredito que vários títulos possam ser bem sucedidos, desejo então que na sua segunda temporada “Locke & Key” se arrisque um pouco mais, quem sabe, talvez ainda consiga atingir o seu grande potencial.
Até lá, temos uma boa série para ver em tempos de quarentena.