“Milagre na Cela 7” é uma das mais recentes atracções da Netflix, que tem deixado a esmagadora maioria dos espectadores em lágrimas.
Haverá algo de tão profundo, neste filme turco de 2019, que mereça o chorrilho de recomendações e reacções emotivas nas redes sociais ou será ele apenas tão comovedor como descascar uma cebola?
Originalmente produzido em 2013 na Coreia do Sul, sob a realização de Hwan-kyung Lee, a história de Milagre na Cela 7 tem sido, desde então, levada para outros países, onde originou versões recriadas e homónimas do mesmo filme. Antes de chegar à Turquia, haveria já chegado, em 2017, a Bollywood e no mesmo ano, em 2019, às Filipinas. Programada já a estreia em 2020 na Indonésia, também com uma versão adaptada da mesma história, coloca-se a questão – de que trata, afinal, este filme que parece estar além de qualquer barreira linguística?
Realizado pelo turco Mehmet Ada Ozketin, “Milagre na Cela 7″ – ou como apelidado na versão turca, disponível na Netflix, “Yedinci Kogustaki Mucize” – conta-nos a trágica, mas simultaneamente bonita e esperançosa história de Memo e Ova, pai e filha respectivamente. Memo é um homem adulto, pai e portador de uma doença mental que se viu obrigado a deixar Ova, a sua filha de seis anos, por ter sido injustamente condenado à morte após ter sido acusado da morte de Seda, uma menina da mesma idade de Ova e filha de um comandante turco. É assim que o nosso protagonista vai parar à Cela 7, numa prisão turca, onde os seus companheiros reclusos acabam por lutar pela sua salvação e inocência, mais do que o próprio, dado o seu desazo mental. Apesar de estabelecido o fio condutor do nosso filme, notem que ainda não falei do milagre. Esse deixo por revelar para quem se interessar em ver o filme.
Este filme, que se encontra, actualmente, no segundo lugar no top dos mais vistos da Netflix, é uma película que apela à emoção mais do que à razão e fá-lo, propositadamente, com uma determinação admirável. Desde logo, nota-se a combinação calculista de demasiados ingredientes que são característicos em receitas de filmes deste género, que os fãs do cinema apelidam como tearjerkers – filmes que nos movem para um apego emocional, com o intuito de nos levar catarticamente às lágrimas. Posto isto, admito que esse intuito, por si só, não seja necessariamente negativo, uma vez que temos imensos tearjerkers que são, conjuntamente, também enormes filmes do cinema, tal como “Schindler’s List”, “Titanic” ou “Shawshank’s Redemption” entre outros. Contudo, em “Milagre da Cela 7”, vários são os ingredientes usados de forma excessiva e errada para que o filme almeje sequer tocar o sabor dos que acabei de mencionar.
O Plot do nosso filme é simples, o que o torna apelativo ao público em geral, mas é simplificado de tal forma ao ponto de serem deixadas a olho nu lacunas expressivas. A título exemplificativo – um director de uma instituição prisional que vai à aldeia onde residia o recluso; sobe ao cimo de umas ruínas, à procura de uma pista que prove a sua inocência, porque lhe haveria sido sugerido por uma menina de 6 anos – parece-me demasiado irracional para se tornar credível. Por conseguinte, esta é a ideia com que se fica do enredo, ou seja, bonitas conclusões fundadas por premissas muito pouco fiáveis.
Por outro lado, poderíamos dizer que o filme se foca mais nas relações entre as personagens do que propriamente na racionalidade dos acontecimentos. Há um factor de verdade nessa análise, dado que alguns dos bons momentos do filme são fruto da relação, pai e filha, de Memo e Ova, ou até mesmo da avó. No entanto, há claramente uma construção paupérrima das nossas personagens, desde as principais às mais secundárias, que vai proporcionalmente empobrecendo à medida que estas se vão afastando de Memo. Novamente, a título exemplificativo, destaco o comandante turco, pai de Seda, que é transformado numa espécie de vilão, no nosso filme, sem que seja explorado, convenientemente, a complexidade dos sentimentos e do pensamento de alguém que acabara de perder uma filha.
Não obstante, é facilmente entendível o uso desta visão maniqueísta do bem e do mal neste tipo de filmes – é mais imediato e aliviador, para o espectador, depositar todas as usas frustrações e angústias numa personagem que é tornada malévola (como o pai de Seda) e criar empatia com uma personagem totalmente bondosa incapaz de cometer o mal (como Memo ou Ova). Com as lágrimas sempre como destino, fica pelo caminho o realismo e a complexidade da natureza humana.
A qualidade dos diálogos e a beleza estética do drama, por sua vez, sofre da mesma falta de profundidade que os restantes elementos do filme. É estranho notar que um drama, que gasta tanto tempo em expor uma deficiência mental do seu protagonista, não nos brinde com uma escrita mais profunda e inteligente. Há uma clara diferença entre o simples mostrar um deficiente a comportar-se, claramente, como um deficiente e a complexidade de expor a dificuldade imposta pela deficiência. Alguns filmes, como o não muito distante “The Theory of Eveything”, com o genial Eddie Redmayne, conseguem essa difícil tarefa, mas muitos, infelizmente, como o “Milagre da Cela 7” ficam-se pela primeira.
Neste contexto, torna-se peremptório falar nas performances dos nossos actores. Aras Bulut Iynemli desempenha de forma muito satisfatória a personagem de Memo, que cumpre o que lhe é pedido e não pode ser culpado por não lhe terem pedido mais. A jovem Nisa Sofiya Aksongur, que interpreta a pequena Ova, possui uma ingenuidade e uma ternura natural que nos é impossível ficar indiferentes. Todavia, gostaria de fazer uma menção honrosa para a jovem professora de Ova, a actriz Deniz Baysal, a qual, apesar do pouco tempo de ecrã, num e outro momento me pareceu estar num patamar diferente dos restantes.
No que diz respeito a elementos mais técnicos, o filme melhora um pouco, embora o uso excessivo dessas técnicas faz com que este, em muitas das suas partes, perca o efeito desejado. Se juntarmos todos os cortes, podemos ver que uma parte demasiado longa do filme se passa com o desacelerar do movimento de câmara e o acompanhamento de música melancólica, pouco diversificada. Apesar de haver momentos, em que essas combinações resultam, a sua utilização excessiva entorpece o espectador, novamente com o foco no despertar das emoções, em detrimento da contemplação estética.
No entanto, é justo afirmar que no que toca à fotografia, o verdadeiro milagre em “Milagre na Cela 7” acontece. O local onde residem Memo, Ova e a avó, para além de esplêndido é filmado com enorme justiça. O mesmo pode ser dito sobre as cenas na entrada da casa em pedra, onde residem, ou até mesmo no interior da Cela 7. A beleza estética desses locais salta perante os nossos olhos, num filme que acaba por mostrar que, talvez, tivesse muito mais para dar.
Apesar de ter muito mais para dar, talvez numa futura versão adaptada, quem sabe num outro país, não podemos dizer que este “Milagre na Cela 7” turco seja um filme horrível. Na verdade, longe disso, faz muito bem aquilo a que se propõe fazer – a tocar o coração do espectador mais casual e geral do cinema – numa altura de quarentena prolongada, em que as pessoas, mais do que nunca, estão sensíveis e predispostas a consumir este tipo de conteúdo. Ainda assim, a originalidade que traz ao cinema é demasiado reduzida, para não dizer quase nenhuma, e estou certo que o tempo acabará por fazê-lo esquecer tão depressa como o tornou viral.
“Milagre na Cela 7” estreou em Portugal no dia 13 de Março de 2020 e encontra-se disponível na Netflix.