Quando me coloco a imaginar as possíveis merecidas adaptações cinematográficas das histórias de figuras portuguesas, a resposta que recebo é geralmente a mesma: “É preciso que haja público para isso…”.
Pois bem, certamente que um filme sobre o mais carismático rosto da política nacional seja um atraidor de números, sobretudo para as envelhecidas diferentes faixas etárias que pesadamente compõe este país, acima, claro, às reduzidas taxas de natalidade que, por sinal, apenas fornecem ao país uma vasta camada jovem pouco ou de maneira nenhuma interessada em conhecer o contributo que a campanha e a eleição de Francisco Sá Carneiro têm presentemente na sua liberdade. A utilidade das aulas de história pode ser precária. E é.
A comunicação social e as presentes entidades do Parlamento podem evocar em vão o nome e os atos de figuras inesquecíveis. E evocam, com efeito banalizando. As recordações que os nossos pais carregam das suas afiadas juventudes dedicadas à cultivação dos seus conhecimento e ideação políticos e que, mais tarde, nos transitem podem ser menos iluminadoras que o pretendido. E são. O povo português pode ser rudemente desinstruído, deseducado e desdenhador. E é. Mas, se mais alguém tirar notas da maravilhosa oferta da Patrícia Sequeira, pelo menos o panorama do chacoteado cinema português pode prosperar. Tal como este amor prosperou.
Na sua reservada postura, Ebba Merete Seidenfaden levanta-se da secretária domada pela arrogância e desumana indiferença de um agente da PIDE, despreocupado com os gritantes números de mulheres sofridas nas mãos de abortos clandestinos e dos maridos abusadores. Portugal não é o seu país. Portugal não a entende. Portugal não a pretende entender. Portugal não a quer. Talvez Portugal nem a mereça. Funda a editora Publicações Dom Quixote, em 1965, com a qual se moveu contra as forças ditatoriais dos últimos anos do Estado Novo, e apaixona-se por Francisco Sá Carneiro, carismático movedor de multidões nascido no Porto. Ambos casados. Envoltos em cenários de enorme distinção e de facílimas possibilidades de não se relacionarem. Ou diria antes com dificílimas.
Com tanto em comum e pouquíssimo em incomum, as personas (pública e privada) dos dois pavões complementam-se como poucos pares românticos da História portuguesa. A frieza calculista, altiva e assertiva dinamarquesa, oriunda, como muitas outras, de uma sociedade, sem surpresa, à frente das convenções civilizacionais, sociais e morais dos povos sulistas, encontra um sossegado abrigo no ardente, descontrolado, charmoso, liberal, correto, moral e magnético romantismo lusitano.
Snu Abecassis altera a disposição do habitualmente rigoroso penteado, permitindo que o liso cabelo louro esvoace ao lado da face vincada e barbeada do eventual Primeiro-ministro, que estende discretamente a mão atrás das costas para entrelaçar os dedos de marfim com os pálidos da amada. É através desta simbólica, belíssima e inesquecível contemplação poética que “Snu” se torna num inescurecível filme português, uma amostra audiovisual das raízes mais apaixonadas da literatura nacional e que tão bem definem aquilo que o cinema luso pode ser. Aliás, que deve ser. Mérito do texto da realizadora e da Cláudia Clemente. Um único retoque seria o uso de silêncios. Algumas cenas beneficiar-se-iam se os personagens simplesmente não descrevessem os seus sentimentos. Felizmente, tal imperfeição dura pouco.
A inescrutabilidade do cinema português é praticamente um paradigma presente na nossa praça, a começar pelo público, desabituado a consumir outro tipo de cinema (entenda-se outro tipo de narrativa e outro tipo de diálogo) que não o americano e que, de seguida, servida uma refeição diferente, é incapaz de desligar o intuito de crítica gratuita, irrefletida e puramente ignorante. Não que os espectadores sejam todos “poucachinhos da cabeça” ou que os cineastas portugueses sejam obrigatoriamente constituídos por uma incontestável e fechada superioridade intelectual (na maioria dos casos talvez desmedida e inútil).
Parece que qualquer coisa que produza cá precisa de um carimbo do estrangeiro, uma certificação de qualidade de uma entidade aparentemente superior devido à sua diferente nacionalidade. Tal como não foi “São Jorge” aplaudido a não ser depois de regressar de lá fora, também “Snu” não será. Apenas o selo de Cannes ou de Veneza colocará o filme da Patrícia Sequeira nas bocas dos ditos cinéfilos portugueses. Mas, tal como qualquer entrega de prémios hollywoodesca, pouco isso importa. A mim sempre me disseram que aos burros não se dá livros, dá-se palha.
Enfim, mais do mesmo. “Snu” merece ser exibido e servido de exemplo. Visualmente, deva-se dizer que estamos perante uma das obras mais vistosas que este país já produziu. A começar pelo elegante trabalho de câmara, lembrado por inúmeros planos sequência assentes em pacientes e subtis movimento horizontais, circulares ou retos, seguindo os personagens nas suas abaladas nuvens de modéstia para onde quer que se dirigiam, usualmente observados atrás das orelhas, fotografadas as nucas e os cabelos.
Ao lado, também montado uma impecável reconstituição histórica, à base de credíveis guarda-roupa e design de produção, está uma fotografia de tirar o fôlego, da autoria do João Ribeiro, diretor de fotografia do “Cartas da Guerra” e do em filmagens “O Ano da Morte de Ricardo Reis”. Começando pelas cores cuidadosamente vividas da editora e do vestuário da protagonista e revestindo-se na sombra das sedes institucionais e restantes ambientes de influência, na qual povoam cigarros, pesares sonoros e a frenética edição do Pedro Ribeiro (creditado no futuro “Variações”), o ambiente prevê uma mixórdia de emoções prestes a explodir. Aliás, igual destaque para a banda sonora, constituída por melodias cintilantes e líricas e aprazíveis cantigas populares que o indivíduo que vos escreve frustradamente desconhece. E melhor que a estética só mesmo as interpretações. Não fosse o uso das imagens de arquivo dispostas literalmente ao lado do elenco, tudo seria irretocável.
Após a conturbada e, se quisermos, violenta química entre Joana Ribeiro e Paulo Pires em “Madre Paula”, eis que Inês Castel-Branco e Pedro Almendra brindam o público com trabalhos dignos não apenas, com certeza, da memória das recordadas e respeitadas personalidades, aceitando transportar um sotaque ligeiro e uma postura sorridente, respetivamente, mas principalmente a demonstração da importante peça de biografias nacionais – genuínas interpretações, ao invés de caricaturais.
Há muito que Portugal assume que, para contar uma história de empáticos rostos lusíadas nas grandes telas basta elevar a duração de tempo dos sketches que em televisão se produzem. Pois bem, dada a imediata necessidade (não só do nosso país) em comparar a naturalidade comportamental com as respetivas bizarrias humorísticas, não seria surpreendente ouvir que os atores escolhidos não eram parecidos o suficiente, como se as parecenças fossem sinónimo de uma boa interpretação ou de um bom ator. Curiosamente, sim, existem parecenças, mas o duo romântico atinge, com o devido (e gigante) mérito, o objetivo – ressuscitar os carateres em questão: o de uma mulher ideologicamente superior e o de um homem personificador da esperança necessária no período pós-ditadura e pós-PREC. A química é lindamente instantânea.
No elenco, estão também presentes uma charmosíssima, elegante e grandiloquente Ana Nave na pele da Natália Correia, uma antagónica Maria João Pinho, presa nos retrógrados ideais matrimoniais, religiosos e educacionais do Portugal do antigamente, uma companheira Inês Rosado na pele da Conceição Monteiro e um funcional Pedro Saavedra na pele de um imprevisível Mário Soares.
Não direi nada de novo se afirmar que mais filmes portugueses deverão ser feitos com amor à arte e com respeito às histórias que são contadas. Aqui, ainda com diversos elementos que podem servir como uma bem-vinda aula de História para quem queira saber o quão grande foi o peso e influência de Sá Carneiro na sociedade portuguesa, dentro e fora da política, “Snu” não é uma leitura de Wikipédia traduzida para o grande ecrã. Diga-se, aliás, que é bem mais competente que usuais biografias americanas exibidas ao domingo à tarde. Não é a história da ascensão do (então) PPD e do Portugal pós-25 de Abril que nos é exposta, obedecendo a normas documentais.
O que recebemos é um olhar introspetivo e, se quisermos, audaz sobre uma mulher de relevo tanto para uma cultura tanto para um mero e singular homem elevado aos pedestais da autoridade e do poder, resistindo, como pouquíssimos, àquilo que o favorecia. Tal como respondeu Snu quando questionada sobre a sua estranha permanência num país atrasado, quem se depara nos bastidores do cinema português deverá ser incentivado, apoiado a semear e regar “uma vontade de ajudar a mudança”. Para tal, cá estará quem pague bilhete.