Chega-nos um filme bastante autoral e provindo de territórios caraterísticos de uma estranheza semelhante à do Yorgos Lanthimos e uma mestria visual inspirada no trabalho do Stanley Kubrick. Definitivamente não para toda a gente. Mas bom?
A segunda longa-metragem realizada pelo ator americano Brady Corbet acompanha a transição da juventude para a vida adulta de uma adolescente que, após vítima de um ato de extrema violência, inicia uma carreira musical que a eleva ao estatuo de popstar global.
Com muita pena minha, não vi “A Infância de um Líder”, a estreia de Corbet na realização e por muitos considerado um dos melhores filmes de 2016. Em 2018, com estreia no LEFFEST e em inúmeros outros festivais, “Vox Lux” foi esperado com alguma antecipação depois de serem expostas fotografias da Natalie Portman com aquele visual. Independentemente da sua receção, o filme certamente dividirá o seu público, apesar de ter estado a receber críticas gerais bastante favoráveis até agora, ao contrário de “Mãe!”, por exemplo.
A diferença mais notável entre o filme de 2018 e o do Darren Aronofsky é a forma como estes foram aceites. Mas, enquanto que o filme chacinado pela crítica protagonizado pela Jennifer Lawrence abria a porta para um universo de comentários sociais e humanísticos, “Vox Lux” prova ser um filme inclusivo de bastante talento, todavia prejudicado por obviedades alegóricas e fenómenos inexplicados que estragam aquele que podia ser, de facto, um dos melhores filmes do ano.
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Mas começando pelos prós. Tecnicamente falando, Brady Corbet é ótimo. O realizador ostenta um trabalho de câmara maravilhoso, composto por longuíssimos planos sequência, desde o mais estimulante tracking shot nas costas dos personagens nas ruas de Nova Iorque ou nos bastidores de um espetáculo, até ao plano médio estático no qual o elenco pode expressar-se de forma passivamente eloquente. Mais que uma vez, aliás, a câmara percorre estradas ou túneis intermináveis cheios de uma luminosidade sinistra, que constituem a realidade mais psicadélica do filme, sustentando algumas camadas temáticas. E nesta equação está também uma banda sonora diversificadamente bizarra, constituída por heavy metal, baladas e acapella. Sendo alguns deles temas da autoria da australiana Sia.
Visualmente, o filme é majestoso. Mérito do inglês Lol Crawley, que trabalhou no episódio ‘Crocodile’, de “Black Mirror”. Os três atos de “Vox Lux” são fotografados com paletas de cor individuais, começando numa desconfortável ambientação monotonamente arrepiante e escura, percorrendo posteriormente cores góticas e berrantes também no guarda-roupa (um preto, um azul, um roxo, um néon), finalizando num espetáculo visual estonteante mais declarado. Destaque também para a edição urgente do Matthew Hannam, que editou “Swiss Army Man”.
E é então que chegamos ao guião. O filme é uma enorme dissecação na sua protagonista. Esta é interpretada por duas atrizes em períodos distintos da sua vida e o arco é extremamente bem escrito. Na sua base, “Vox Lux” é um filme acerca da perda da inocência. A personagem é apresentada como uma jovem ingénua, passivamente doce, religiosa e talentosa. Com uma bagagem de 17 anos de sucesso, torna-se na vítima da sua própria ascensão. Conhecemos uma mulher egocêntrica, narcisista, histérica, insultuosa, prepotente, viciada, mal resolvida e extremamente inadequada para educar uma filha.
À margem do excelente estudo de personagem, o filme fala sobre as consequências a longo prazo de atos violentos; a perceção individual de que tudo à nossa volta nos engole e jamais acompanha o nosso crescimento acelerado; da sensação de que, ao contrário de toda a gente, somos as únicas vítimas da inelutabilidade do tempo; dos danos e defeitos que, neste caso, uma filha herda da mãe e o mau lado de uma fama mundial repentina. Dava para se fazer algo extraordinário com tudo isto, certo? Mas qual o problema?
O problema do Brady Corbet é a sua necessidade de (quase) reinventar a linguagem cinematográfica à qual estamos habituados. O principal problema do filme não é o texto nem os comentários mais simples, mas sim alguns recursos artísticos sem qualquer lógica que jamais funcionarão no cinema. É muito difícil descrever o filme sem dar spoilers, sem comprometer a surpresa do espectador. Mas a verdade é que os métodos que o realizador escolheu são pobres, óbvios e (faltando termo melhor) ridículos. Em certa medida, “Vox Lux” fez-me lembrar o filme que o personagem do José Raposo queria fazer na série “Sara”. A ligeira pretensiosidade do Corbet assemelha-se à falta de noção do Morais.
E, para piorar, o filme tenta também explorar o recente fenómeno de tiroteios nas escolas americanas e do terrorismo na Europa, sem jamais justificar a aleatoriedade daquelas cenas. São sub-arcos absolutamente esquecidos. Inclusive, no primeiro ato, a protagonista tem um monólogo pormenorizadamente descritivo de um sonho repleto de simbologia conveniente e bastante fácil de entender. Não pensaram nenhuma vez em mostrar esse sonho? Com decisões extremamente contraproducente como estas, tanto as interpretações como a credibilidade do filme são prejudicadas. Pelo menos o elenco é espantoso.
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Nos seus melhores momentos, a Raffey Cassidy ofusca uma boa parte dos colegas e prova ser uma atriz com uma ótima carreira futura. A jovem de 16 anos já me tinha impressionado muito no “O Sacrifício de Um Cervo Sagrado”. Ela canta, tem um estilo de representação quase único, cheia de incertezas e uma inexpressividade preocupante. É muito talentosa. Infelizmente, é a principal prejudicada pelo realizador. O que foi feito com a atriz aqui foi ilógico e até mesmo desrespeitoso. Manchou a sua prestação.
A Natalie Portman está espetacular. É provavelmente uma das melhores performances da sua carreira. A partir do momento em que aparece, a atriz comanda imediatamente os diálogos com uma eloquência antipática e detestável, deixando à vista, no entanto, uma mente feminina altamente desequilibrada e danificada pela vida que nunca pediu, mas que jamais pensou em abandonar.
O Jude Law está ótimo. Está totalmente à vontade com o seu personagem, que, por sua vez, provoca imensos mixed feelings no público. Nem o espectador nem as personagens têm a certeza das suas intenções. É uma pessoa difícil de descortinar. Será mais um agente sedento por dinheiro ou um homem com boas intenções e apenas rígido e leviano?
A Jennifer Ehle não faz grande coisa. Na maior do tempo, a Stacy Martin é mantida na sombra da Natalie Portman e da Raffey Cassidy, mas tem uma cena memorável. Já o Willem Dafoe dá uma aula de narração. Narrar um filme nunca é absolutamente necessário, é verdade. Mas a voz tenebrosamente densa e envelhecida do ator adequa-se extremamente bem à história. Complementa as informações presentes no texto, fornecendo similarmente outras por cima de interessantes montagens.