Quando temos a chance de rever e mergulhar em Touch of Evil nos dias de hoje, são precisos apenas três explosivos minutos para nos questionarmos – estávamos mesmo em 1958, quando Orson Welles gravou este filme?
Apesar de serem dispensáveis apresentações, sinto a urgência em mencionar que Welles foi um versátil actor, escritor, produtor e amplamente considerado, pela crítica e pelo público em geral, como um dos melhores realizadores na vasta História do Cinema. Desde Citizen Kane a The Magnificent Ambersons, foi autor de algumas das melhores obras primas que a indústria deu à luz. Em 1958, particularmente, trouxe-nos Touch of Evil, um dos melhores “filmes B” que já tive o prazer de ver.
Com o intuito de promover o cinema e atrair os espectadores, que se haveriam afastado das salas americanas no decorrer da Grande Depressão, tornou-se prática comum, na América, as sessões duplas de cinema, em que, pelo preço de um, o espectador podia assistir a dois filmes, geralmente do mesmo género, mas com orçamentos visivelmente distintos. Apresentado como a metade hipoteticamente mais pobre de uma dessas duplas sessões, é assim que nos chega Touch of Evil, um dos últimos filmes Noir da época clássica.
Não deixa de ser curioso que o enredo, deste nosso filme policial dos anos sessenta, se passe entre o “aqui” e “ali” da passagem fronteiriça estado-unidense e mexicana, à medida que, num plano moral, deambula entre o “cá” e o “lá” do Bem e do Mal. Chamo particular atenção para o que considero ser uma das melhores aberturas de filme que me ficou na memória. Tudo se inicia com um acertar de relógio de bomba para três magníficos minutos de maravilha técnica de realização cinematográfica e fotografia, que são abruptamente cortados, precisamente, com a explosão de uma viatura e, consequentemente, o assassinato que serviria de mote para os fugazes restantes cento e sete minutos de filme.
Dado o pontapé de saída do nosso enredo, temos de um lado da nossa fronteira, física e ética, Hank Quinlan – um detective e polícia americano com uma vasta experiência em resolver crimes com ajuda da sua, talvez demasiadamente, reconhecida intuição – e, do outro, Mike Vargas – um detective e polícia mexicano, associado à resolução de casos de tráfico de narcóticos no México, cujo trabalho haveria ganho notoriedade por condenar parte da grande família narcotraficante mexicana – os Grandi. A rivalidade entre os detectives e a diferença deontológica e, mais tarde, notoriamente metodológica de ambos gere quase todo o conflito e tensão do nosso filme.
“O trabalho de um agente da polícia só é fácil num Estado Policial” (Mike Vargas in Touch of Evil).
Apesar de ambos defenderem a Justiça, Vargas representa a verticalidade ética, a idoneidade moral, a Lei, ou seja, defende uma justiça que lhe importa mais que seja legal do que sua. Segundo Mike, a lei também protege o criminoso e daí decorre a diligência de se provar legalmente as evidências de que determinado suspeito é, na verdade, culpado. Todavia, Quinlan, talvez influído por nunca ter apanhado o assassino que haveria estrangulado a sua esposa, designando-o como o último assassino que deixou escapar, defende a mesma justiça, mas de uma forma diferente. Apesar de ser um detective perspicaz, a sua noção de que os fins justificam os meios moldam o seu método, ou falta dele, enquanto polícia.
Não deixa se ser singular que, nas cenas do filme em que o trabalho e o método de ambos colidem, Hank ordena incessantemente que Vargas pare de falar “mexicano” e comece a falar “inglês” com o suspeito, para que ele consiga entender a conversa de ambos. No entanto, a diferença linguística de ambos é bem mais profunda do que a superficial diferença idiomática, uma vez que se trata, essencialmente, de uma divergência de pensamento e valores éticos. Prova disso é que, nos momentos em que falam todos no mesmo idioma, não transparece nunca ao espectador que haja alguma espécie de concordância entre eles.
A tensão, entre os nossos dois agentes da autoridade, aumenta quando Vargas se realiza e, posteriormente, começa investigar se o detective americano não estaria a colocar, de forma deliberadamente suja, evidências que estariam a incriminar o principal suspeito do crime, que ambos estavam interessados em descortinar. Quinlan, por sua vez, preocupado com a sua reputação, da qual se munia para incriminar, sem levantar alvoroço, os mesmos suspeitos que a sua intuição apontava serem culpados, tenta descredibilizar Vargas. Joe Grandi – membro da família criminosa mexicana que tentava, também ele a todo custo, desacreditar Vargas para poder salvar o seu líder – tem um papel preponderante no desvio da intuição justa do nosso detective americano.
Em Touch of Evil, Hank Quilan representa a corrupção, a decadência do Bom e do Justo e, para esse efeito, toda a personagem foi desenhada com esses contornos. A decadência física do seu corpo, excessivamente pesado, da constância do seu suor e do mancar da sua perna, aliada ao vício do álcool (que teima em não o largar), ao vício do açúcar, ao vício do tabaco, ao vício de voltar, de maneira utópica, a casa de Tanya para se isolar do seu trabalho angustiante e, sobretudo, ao vício de viciar o sistema de justiça, revela-nos, a nós espectadores, o mesmo que Tanya haveria revelado Hank, numa fase final do filme, quando este lhe pediu para ler o seu futuro:
“Não tens nenhum. O teu futuro foi todo usado” (Tanya in Touch of Evil)
Da mesma forma que Quinlan usou e manipulou o futuro das pessoas envolvidas nos seus casos, ainda que convicto da factualidade da sua intuição, também o seu futuro parecia estar, naquele momento, esgotado de opções e margem de manobra – é esta a previsão drástica e fatalista de Tanya, que o afirma com um pesar de quem parece ter conhecido, outrora, um outro Hank.
Não é fácil definir Hank como sendo um polícia bom, ou um polícia mau. Reparem que o nome escolhido para o filme não foi A lot of Evil mas, antes, a touch – um toque. A beleza do filme e, mais especificamente, do enredo, inspirado na obra de Whit Masterson (Badge of Evil), reside na complexidade destas personagens que, curiosamente, estando inseridas num filme Noir, apresentam elas diversos graus de cinza, no que à sua moralidade e acção dizem respeito.
“Ele (Quinlan) foi um homem fora do comum. O que interessa o que se diz das pessoas?” (Tanya in Touch of Evil)
Touch of Evil é, sem margem para dúvidas, uma das melhores obras de Orson Welles e um dos melhores filmes da era clássica do cinema. Merece ser visto e revisto não só pela profundidade do enredo e pela complexidade das personagens, mas também pela audácia da realização característica do cineasta americano. Fica, marcadamente, a sensação de que Orson usa a tela toda, como poucos naquela época, para mostrar detalhes que não podiam passar, e não passam, despercebidos no filme. As interpretações são fantásticas, principalmente as de Orson Welles (Hank Quinlan) e Charlton Heston (Mike Vargas), embora, claramente, não se consiga ficar indiferente ao charme de Janet Leigh (Susan Vargas) no papel de esposa de Mike.
Fora dos cinemas esta foi, na verdade, também ela uma obra que gerou tensão numa espécie de fronteira, desta vez, entre realizador e produtora. Após a conclusão das gravações e em época de edição e pós-produção da película, Orson foi, numa espécie também de “toque de maldade”, despedido por discordâncias com a produtora e, por esse motivo, foi distribuída uma versão do filme reeditada. Após visualizar a cópia adulterada do seu próprio filme, o realizador americano publicou uma carta aberta em que apontou e justificou um conjunto de alterações, as quais, na época, nunca foram ouvidas.
Foram necessários mais de quarenta anos para termos uma versão remasterizada, com mais quinze minutos de filme e, acreditamos nós, mais próxima do que Welles idealizara. Nunca o termo remasterização fez para mim tanto sentido, pois esta sim foi uma verdadeira tentativa de colocar em Touch of Evil, com um pequeno toque, a mestria novamente no seu lugar.
“Touch of Evil – A Sede do Mal” estreou em Portugal a 7 de Novembro de 1958 e encontra-se disponível em DVD.