Artistas em expansão. Um quarteto (de atores e personagens) improvável. E um tenso thriller de crime contado como deve ser. Que venham mais destes!
Kentucky, 2003. O filme conta a história real de quatro amigos universitários que se juntam para assaltar uma biblioteca onde estão reunidos livros compostos por diversos quadros históricos e extremamente valiosos. Dá-nos a conhecer aquele que se tornaria num dos roubos mais conhecidos dos Estados Unidos.
O filme foi escrito e realizado pelo documentarista britânico Bart Layton. Na verdade, “American Animals: O Assalto” trata-se da sua primeira longa-metragem fora da respetiva zona de conforto. Este é responsável por diversos documentários em filme e série para a televisão. Desta vez, será lembrado por um dos filmes mais surpreendentes do ano. Tendo em conta que, pessoalmente, nada mais esperava que uma comédia de assalto apenas divertida.
Primeiramente, deve-se realçar o cuidado do realizador em dosar dois elementos fundamentais, porém, por vezes mal medidos: estilo e substância. O filme tem os perfeitos acertos no que toca à estética e ao desenvolvimento da narrativa. Perde o tempo necessário explorando a multidimensionalidade dos personagens, esperando e, de seguida, exibindo determinados planos, pelo que parece, bem autorais.
Há jogadas muito inteligentes com planos sequências que migram para planos médios ou para os mais abertos. Alguns tracking shots são de deixar o queixo caído. Há mudanças na fotografia sem cortes, mas nunca nada de muito berrante. Aliás, há pequenos detalhes que devem ser vistos atentamente. A câmara consegue, por vezes, contar a história e, em casos distintos, mostrar todo o estado de espírito de um personagem simplesmente se enfiando na cara transpirada ou tremida, ou então colocando-o na ponta do plano, mantendo-o abstratamente afastado de todo o restante cenário, deixando à vista aquele simbolismo subtil. Há inclusive um plano que é simplesmente o ponto de vista do motor de busca do Google. Claro, todo o (grande) mérito também será igualmente do diretor de fotografia Ole Bratt Birkeland, que pelos vistos também é um novato. Ou era.
Sem esquecer a banda sonora. Há até algumas melodias que funcionam de modo operante nas cenas mais tensas (que ainda são algumas). Mas, claramente, nada se compara à escolha musical. Mérito da compositora Anne Nikitin e do Bart Layton. Quem gostou de “Baby Driver” poderá não receber a mesma diversidade, mas terá uma lista de faixas bastante memorável.
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Contudo, a verdade é que, mesmo com toda a sua originalidade, aqui, Bart Layton demonstra o seu amor pelo cinema e pela pintura da maneira mais simples. Caso não saibam, o cineasta optou pelo audiovisual, praticando os cargos de realizador, guionista e produtor, ao invés de investir na sua paixão pela pintura, proveniente de uma velha admiração por artistas como o pintor americano John James Audubon, responsável pelo livro de ilustrações The Birds of America, e a naturalistas/escritores como o Charles Darwin, autor de A Origem das Espécies. Ambas as obras são os principais McGuffins e, claramente, as bases da filosofia do filme. Assim como heist movies clássicos, nomeadamente “Um Roubo no Hipódromo” e “Cães Danados”, mas num tom mais leve.
Guardadas as imensas e devidas proporções, “American Animals: O Assalto” assemelha-se a “Fight Club”, no que diz respeito ao comentário sobre identidade, o consumismo contemporâneo e a tão necessitada quebra da rotina cansativamente quotidiana. E é aqui que as ótimas interpretações do Barry Keoghan (“O Sacrifício de Um Cervo Sagrado”) e do Evan Peters (“American Horror Story”) entram perfeitamente. Os respetivos personagens – Spencer e Warren – vivem cansados. Sendo que, por diferentes razões.
Spencer vive deprimido entre a dificuldade em socializar e a falta de inspiração para pintar, acreditando progressivamente na perda de valor da sua arte e do seu talento. Warren tem a oportunidade de estar numa universidade unicamente graças a uma bolsa e delibera sobre a desilusão consequente das expectativas impostas pelos pais e pelos professores, vivendo em constante revolta, desacordo e infelicidade. O segundo é mais extremo que o primeiro. O que leva inevitavelmente à persuasão de Warren sob Spencer e ao grande assalto. Em busca de algo que os distinga e que os imortalize. Ninguém quer ser igual aos outros.
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Logo, enquanto que em “Fight Club”, o Narrador procura (ainda que inconscientemente) se libertar da toxicidade do sistema e das tendências controladoras do mesmo, em “American Animals: O Assalto”, Warren procura encarnar uma “diferente espécie”, o animal americano lindamente distinto e livre de condicionamentos que só levam à insatisfação e à amargura.
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Já deu para perceber que temos aqui um belo filme. De resto, este continua com os seus prós. Os outros dois membros do grupo são interpretados pelo Blake Jenner (“Supergirl”) e pelo Jared Abrahamson (“Fear the Walking Dead”). Mesmo ofuscados pelo Evan Peters e pelo Barry Keoghan, eles estão totalmente operantes, têm personalidade, motivos bem definidos, arcos e, claro, carisma. O grupo funciona sobretudo nas montagens mais esmiuçadas sobre o plano em si e todo o elenco tem uma ótima química.
Mas é nos contras que o filme se perde gravemente. O Bart Layton (com as suas boas intenções) reúne, de facto, os quatro assaltantes reais, gravando-os a declararem determinadas informações que, mais tarde, seriam eventualmente utilizadas para a formulação do argumento. Todavia, é tudo absolutamente desnecessário. Primeiro, mete inutilmente o público num lugar escusado – no de comparar as parecenças físicas ou comportamentais dos atores com as pessoas reais, quando tal recurso é escrupulosamente irrelevante para refletir acerca da qualidade de uma interpretação. O pior é, no entanto, toda a exposição.
Sinceramente, não acho que a reflexão feita acima seja transcrita do próprio argumento. Toda a gente consegue chegar a determinadas conclusões. Mas é todo o relato do plano, do assalto, das relações entre os membros e até das transições que é inútil. Mesmo estando a gostar, tive a impressão de que estava a assistir um filme de 2 horas e 20 minutos, quando “American Animals: O Assalto” tem apenas 1 hora e 56 minutos. Sendo assim, cortando todos os depoimentos, este seria um filme para 1 hora e meia, 1 hora e quarenta minutos, no máximo.
No entanto, não descarto a possibilidade de o filme ter uma linguagem ambígua ou introspetiva. O Bart Layton tem talento e ficarei decerto de olho nele. Mas diversas virtudes foram postas em cima da mesa que, com alguns ajustes no argumento, podiam perfeitamente ser feitas de uma maneira menos óbvia. Nomeadamente, o vaivém entre os diferentes pontos de vista de cada assaltante. São detalhes fornecidos nas entrevistas reais, é verdade, mas pensemos num Kubrick ou até num Yorgos Lanthimos e refletiremos acerca das hipóteses.