“Dor e Glória” é um filme que explora a vida de um realizador de sucesso, expondo, com segurança e sem receios, todo e qualquer pormenor mais íntimo.
Este é o filme mais pessoal do realizador. Almodóvar abraça a sua vida, submergindo nas suas memórias para contar uma (nova) história. O filme acompanha Salvador Mallo, um realizador afastado dos projetos, que vive isolado, multiplamente amargurado, seja com a vida, seja com as suas dores de costas, cabeça, a depressão com que lida, entre muitas outras maleitas. Almodóvar encontra em Salvador Mallo uma espécie de alter-ego, um espelho, onde nele é plenamente refletido, conseguindo fazer-se transparecer de forma clara.
São inúmeras as semelhanças entre o que acontece no filme e o que aconteceu de facto na vida de Almodóvar. Tudo começa num dos posteres do filme. A sombra de Mallo na parede é precisamente a silhueta de Pedro Almodóvar. Depois seguem-se as comparações que saltam logo à vista. A profissão que desempenha, as inúmeras doenças de que padece, o corte de cabelo que usa, as roupas que veste… Aliás, muitas das vestes de de Salvador Mallo são na verdade roupas de Almodóvar.
Tal como o que acontece com o protagonista do filme, para realizar este filme, Almodóvar quase que se retira da vida real para mergulhar de forma intensa nas suas memórias, exilando-se do mundo e refugiando-se nas suas lembranças. Porém isto não é inédito. Almodóvar recorre-se constantemente das suas vivências diretas para criar as suas obras. Tal como já nos tem habituado, neste filme, o realizador espanhol revisita diversos temas, como a religião e a (homo)sexualidade; a forma como o colora, seja na parte cénica, seja no que toca ao guarda roupa; as narrativas não lineares, com duplo sentido e muitas vezes com a presença de um twist; e a presença de uma figura feminina forte. Tudo isto são traços de puro almodovarismo.
Pedro Almodóvar parece finalmente reerguer-se do tombo aquando da estreia de “Os Amantes Passageiros”. Depois da tentativa que, mesmo não saindo totalmente furada, ficou a saber a pouco quando comparada com a excelência de outras obras, como por exemplo “Tudo sobre a minha Mãe” ou “Fala com Ela”, “Julieta”, onde já se notava um cuidado na construção das personagens, não é comparável ao que acontece com a construção desta, ora não fosse um alter-ego seu.
Contudo, não é só na construção das personagens que Almodóvar está melhor. Ou seja, como estava antes. É também na construção do argumento e na magistralidade que demonstra ao brincar com as narrativas, mexendo na timeline de forma ímpar. Tal como em “Má Educação”, “Voltar” ou “A Pele onde Eu Vivo”, nesta última longa-metragem, o realizador de setenta anos, troca-nos uma vez mais as voltas.
Um argumento denso e bastante coeso torna-se assim no principal suporte do filme, no qual é ajudado (e de que forma) pelo desempenho rigoroso de Antonio Banderas. E que missão tinha Banderas pela frente. De certa forma, interpretar o próprio realizador que o dirigia. “Dor e Glória” é obviamente centrado nele e nas suas emoções. Almodóvar filmou, à excessão de quando apresenta a infância da sua personagem, praticamente tudo em espaços fechados. O facto de ser tudo muito concentrado, faz exaltar a existência de um paralelismo, com o que se passa na vida de Mallo. Muito fechado em si mesmo, sempre muito pensativo, Mallo vive em permanente solidão e numa apatia e introspecção constantes.
O habitual colaborador do realizador, interpreta Salvador Mallo na perfeição. Subtil, sempre muito seguro, Banderas tem um desempenho muito inteligente, não fugindo do registo, sendo sempre fiel à sua personagem, sem cair na tentação de exagerar em cenas mais sensíveis. Aqui até se pode fazer a agradável comparação com o que a sua personagem afirma no filme: “O melhor ator não é aquele que chora, mas sim o que luta para conter as lágrimas”.
Em suma, “Dor e Glória” faz o realizador voltar a aproximar-se, ainda que de forma um pouco ténue, do melhor que já fez. Porém, sendo uma espécie de filme auto-biográfico, é de se lhe dar o devido crédito na forma como é concebido. Pode dizer-se que em alguns momentos é mais do mesmo, quando expõe a vil ideia de pedofilia presente na Igreja, ou que o filme serve apenas para “literalizar” aquilo que já era sabido. Se calhar é isso. Mas não é só. É muito mais. É também poesia. É Almodóvar. É cinema.
“Dor e Glória” estreou a 5 de Setembro mas ainda continua em exibição no Cinema City Alvalade. O filme está nomeado ao Óscar de Melhor Filme Estrangeiro e Melhor Ator Principal (Antonio Banderas).