Se existe algo de que Shyamalan nunca poderá ser acusado é de não acreditar que um dia poderá resgatar alguns dos melhores momentos da sua carreira. Será, contudo, necessário esperar um pouco mais para além de “Glass”, o título que põe fim à sua trilogia de super-heróis e vilões do dia-a-dia.
Uma outrora interessante e inovadora história que começou com o justiceiro Dunn em “O Protegido”, com Bruce Willis novamente no centro das atenções mostrando que não era só o ator fetiche de Shyamalan. Aquele papel assentava-lhe como uma luva e até na atualidade ainda lhe fica bem, é mais ou menos para isso que Willis existe em cinema.
Como Dunn, Willis não era só um durão, era um durão com coração e, ao mesmo tempo, fundia o universo dos seres humanos comuns com o dos semideuses que são os super-heróis da banda-desenhada.
Por entre inúmeros falhanços de bilheteira e alguns azares, Shayamalan não conseguiu lançar o sucessor de “O Protegido” logo a seguir e ainda foi preciso esperar 16 anos para que isso acontecesse, finalmente, em 2016 com “Fragmentado”.
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Pelo caminho, muita gente não acreditava mais no seu projeto de super-heróis e vilões, já que apesar de ter sido percussor da grande febre que haveria de explodir até hoje, existiam tantos filmes com aquelas temáticas que um vilão como Kevin Wendell Crumb, que mais parecia precisar de ser institucionalizado, não conseguia competir com eles.
Novamente, há que tirar o chapéu a M. Night Shyamalan por nunca ter desistido do seu sonho e conseguir concretizar com “Glass” o projeto que se alongou por 19 anos da sua vida. Glass faz inclusive uma subtil menção a essa efeméride no filme, quase no final.
Esse pormenor de Glass é dos poucos exemplos em como é nesses pormenores que Shyamalan se distingue, no facto de se imiscuir nas suas histórias e de lhes conferir um cunho humano.
Contudo, não consegue resistir a estragar a festa aos espectadores porque tem de explicar tudo aquilo que está a fazer. A sensação que se tem ao ver “Glass” é que o realizador considera o espectador ligeiramente idiota para que tenha de se lhe explicar tudo.
Por esta altura, o realizador não se deu conta de que grande parte dos seus trunfos já se esfumara há muitos anos e entretanto Shyamalan parece não ter visto cinema nem se ter apercebido da quantidade de filmes que exploram os temas que legitimamente lhe interessam. Por outro lado, como o próprio admite, é preciso fazer aquilo que se quer fazer em cinema e, nesse aspeto, o objetivo foi concretizado, contra tudo e contra todos.
Em “Glass”, fundem-se os universos dos dois filmes referidos anteriormente e isso teria resultado na perfeição não fosse o facto de não fazerem qualquer sentido juntos, pelo menos na versão agora apresentada.
Aquilo que fazia de cada um dos personagens únicos nos seus lugares, nesta mistura que se torna demorada e sem grandes ou praticamente nenhuns picos de êxtase, tudo se dilui. O interesse tresloucado de Crumble torna-se excessivo e repetitivo – já tudo tinha sido visto e em melhor anteriormente – Dunn passa o tempo às voltas com a sua criptonite emocional e Glass oscila entre o adormecido e um pico de corrente quase único em todo o filme.
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Não há grandes confrontos, a interessantíssima personagem de Anya Taylor-Joy, Casey, praticamente não tem intervenção excepto no desfecho e perde-se sem ser explorada convenientemente. Grande atriz que nos poucos momentos em que entra faz o quase todo o filme, sem dizer muito.
Na prática, a ideia é boa mas a concretização é desastrosa: sob o pretexto da análise psiquiátrica numa experiência levada a cabo pela psiquiatra Ellie Staple, estes personagens apenas repetem aquilo que já se sabia sobre eles: homens comuns com qualidades excepcionais (que podem ser boas ou más).
Em “Glass”, teria sido mais premente manter tudo dentro do tubo de ensaio e criar mais pressão, que convenientemente seria libertada porque deste modo só se trata de uma longa faixa de trap, sem clímax e apenas com a desculpa de o realizador finalmente conseguir atar as pontas soltas para sua satisfação pessoal.
“Glass” tinha tudo para correr bem mas faz lembrar aquelas receitas em que se segue à risca as indicações e no fim sai tudo errado, seja por não haver alma, seja por demasiado exibicionismo confiante, seja porque 3 é a conta que deus fez nem tem de haver uma justificação.
A ideia de que quando se acredita tudo se torna possível é interessante apesar de já corrente e a de que apesar das inúmeras criptonites emocionais mencionadas é possível ultrapassar quase tudo também. Ultrapassar esses chavões e transformá-los num filme inspirador não foi decididamente o que Shyamalan conseguiu.
Frases feitas, exibição até à exaustão das habilidades de James McAvoy, o enfraquecimento da história e motivações de Glass quando era o seu momento de brilhar, a inutilização de Casey como ponto de interesse, a ridicularização e anulação do papel de Sarah Paulson que tenta desacreditar os três homens mas acaba por não ter qualquer tipo de intervenção ou força para contrabalançar a sua natureza afinal animalesca.
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“Glass” é uma parada sem sentido argumentativo, datada, comum, que inclusivamente podia não existir e até manteria intactas algumas das qualidades que os anteriores dois filmes trouxeram. Assim, acaba por estragar três casas, ao tentar trazer uma conclusão não necessária, ao tentar explicar aquilo que já estava claro e por não trazer nada de novo ao cinema, até porque da sua confusão enquanto realizador pomposo já existiam demasiadas provas.
Este é, em resumo, o filme em que um homem com espírito de garoto traz muitas novidades nas mãos que são novidades apenas para si e não respira um segundo, conta a história toda como um cientista da realização e, no fim, não parece provar nada a não ser a si mesmo. Não é preciso tentar inventar a roda tantas vezes, M. Night Shyamalan.