Médico e realizador, Thomas Lilti regressou aos hospitais para ajudar os pacientes da pandemia. Ao mesmo tempo, em Portugal, o seu filme “Verdade e Consequência” estreou em VOD.
Fez um percurso entre a medicina e o cinema…
Eu queria fazer cinema e acabei por ir para medicina porque era jovem e queria aprender alguma coisa que me garantisse um emprego, para além de que o meu pai era médico e, por todas essas razões, acabei por fazer estudos de medicina mas sempre com uma grande paixão pelo cinema.
Passei por um primeiro ano de competição e de seleção que foi muito violento mas que me ajudou a aprender e a revelar coisas sobre mim. Ao chegar ao segundo ano, aliviado de ter passado esse concurso de acesso, decidi arriscar e fazer cinema a par e passo com os estudos de medicina. E então consegui fazer os dois de uma maneira totalmente estanque.
Só que cheguei à conclusão de que os filmes que estava a fazer, que não estavam de todo relacionados com medicina, eram bons mas não eram ‘super’ e isso fez-me refletir que talvez fossem melhores se eu falasse de temas sobre os quais lidava no dia-a-dia, e que me diziam respeito, daí a ter passado a contar histórias ligadas à medicina.
“Verdade e Consequência” deveria ser inicialmente uma série?
A primeira ideia para “Verdade e Consequência” era de fazer uma série, mas acabou por não se concretizar e daí reduzi a escala para um filme. Entretanto, de um momento para o outro, com o sucesso do filme, já era possível fazer uma série. Mas só cinco anos depois é que voltei a pensar no assunto e isso permitiu-me regressar à ideia inicial, que era de explorar mais o tema. Fizemos uma série para a televisão francesa, que também foi bem sucedida, o que por sua vez permitiu que fizéssemos uma segunda temporada, na qual estamos a trabalhar.
Esperava um tão grande sucesso para “Verdade e Consequência”?
Não, não estava à espera que tivesse tanto sucesso. Tínhamos esperança, mas foi algo que realmente mudou a minha vida porque para os estúdios um filme sobre medicina não era de todo um êxito garantido.
E depois foi nomeado a 7 Prémios César, incluindo Melhor Filme e Melhor Realização…
[Nomeado a Melhor Filme, Melhor Realização, Melhor Ator (Vincent Lacoste), Melhor Atriz Secundária (Marianne Denicourt), Melhor Argumento Original, Melhor Montagem e Vencedor de Melhor Ator Secundário (Reda Kateb)]
É verdade sim, as cerimónias e os prémios, isso foi tudo em 2014/2015, já passaram cerca de cinco anos! Nunca estamos à espera disto tudo, mas é verdade que a minha vida mudou muito desde aí. Antes desse filme tinha feito “Les yeux bandés” [“De Olhos Vendados” em tradução literal] que não tinha propriamente resultado, mas depois o êxito de “Verdade e Consequência” criou outros problemas, pressões e inquietudes, pois temos medo de não conseguir voltar a replicar o sucesso. De qualquer maneira sempre que fazemos um filme estamos já a pensar no seguinte e depois nem voltamos a pensar no que já fizemos. Mas a verdade é que os filmes a seguir resultaram e tanto “Médico de Província” como “Os Caloiros de Medicina” encontraram o seu público.
Em Portugal “Os Caloiros da Medicina” saiu antes de “Verdade e Consequência”, o que até faz um percurso linear para os espectadores…
Pois, porque eu gravei ao contrário! E quando fiz “Verdade e Consequência” nem sabia que um dia iria fazer “Os Caloiros de Medicina”. Inicialmente até pensava que só ia mesmo fazer um único filme, “Verdade e Consequência”, mas depois acabei por fazer “Médico de Província” e a seguir “Os Caloiros de Medicina”. Mas em retrospetiva até gosto da ideia de estrearem ao contrário em Portugal!
Depois de ver como funciona o ensino universitário em “Os Caloiros de Medicina” a minha pergunta é: Isto é assim para todos os cursos ou só para o acesso ao curso de medicina?
Podemos encontrar sistemas um pouco similares noutras áreas de estudo, mas este caso é mesmo mais específico ao curso de medicina.
Quando vemos o filme podemos dizer que tudo é feito para facilitar o lado dos professores…
Concordo, porque no final o objetivo do sistema nem é tanto de ensinar mas simplesmente de selecionar alunos para o segundo ano do curso. Afinal de contas no primeiro ano de medicina os únicos que verdadeiramente transmitem um saber aos alunos são os outros alunos, dos anos seguintes, que num papel de ‘tutores’ dão-lhes explicações e estão lá para os ajudar. Quando na realidade deveriam ser os professores a ter esse trabalho e essa vontade, o que só mostra que o sistema não funciona.
Há uns anos passou na Festa do Cinema Francês o documentário “O Concurso”, de Claire Simon. Vê-se comparações entre os dois.
Em França temos um sistema universitário que se baseia muito na competição, na seleção e na rivalidade. Nos estudos de comércio, ao fim de dois anos de escola preparatória, deparamo-nos com um concurso, para os engenheiros a mesma coisa. Para a área de cinema há dois anos de universidade e depois um concurso de acesso.
Na medicina o primeiro ano é comum a todos os alunos e depois há um concurso de acesso aos anos restantes do curso, o que é algo totalmente demolidor pois começamos a fazer aquilo que queremos e com que sempre sonhámos e ao fim de um ano, vemos a hipótese de continuar o curso ser-nos arrancada por um concurso de acesso ao segundo ano.
Para os veterinários também, portanto, no geral é algo que existe e que está fortemente cravado nos cursos superiores em França. Após o liceu e os exames do secundário, acaba por ser qualquer coisa na ordem do elitismo e que, apesar de ter algumas vantagens, tem enormes inconvenientes.
“Os Caloiros de Medicina” originou debates em França…
Sim, quando o filme saiu foi colocado em causa o meio de selecionar os “próximos médicos”, o que levou o governo francês a anunciar reformas importantes nos estudos de medicina.
No filme vê-se que é um estudo tão virado para a memorização e escolhas múltiplas que a personagem interpretada por William Lebghil diz que no final os estudantes de medicina ficam mais próximos do pensamento reptiliano que do humano…
Exatamente.
Pensa que as reformas do governo vão mudar verdadeiramente alguma coisa?
Tenho esperança que sim porque como se pode ver no filme não é propriamente a melhor maneira de selecionar os estudantes de medicina: a competição, a seleção, a rivalidade, o absurdo dos métodos de aprendizagem.
O que pensa do estado atual do sistema de saúde em França?
Em França temos atualmente dois grandes problemas:
– O primeiro é que temos um sistema hospitalar público em grandes dificuldades. A miséria que se instalou nos hospitais públicos faz com que médicos, enfermeiros e cuidadores não consigam fazer bem o seu trabalho, que é o de cuidar bem das pessoas. Embora tenhamos uma muito boa medicina em França, com apoios da segurança social e dos seguros de saúde, o sentimento é de que não conseguimos fazer o nosso trabalho quando estamos num hospital público e não há nada pior do que esse sentimento para um profissional de saúde. É verdade para todas as profissões, mas é grave na saúde. Existe quase um sentimento de rebelião nos médicos, que dizem que não podem mais continuar assim. Infelizmente isso reflete-se numa elevada taxa de suicídio na profissão.
– A segunda grande dificuldade em França é a desertificação medical, que era o tema de “Médico de Província”, que falava de regiões inteiras em que simplesmente não há médicos. Acabam todos por se deslocar para os subúrbios das cidades, porque é onde se encontra o trabalho mais bem pago, o que permite um nível de vida mais agradável e isso faz com que as vilas e aldeias fiquem com cada vez menos médicos. É um verdadeiro problema pois o governo não sabe como fazer com que os jovens médicos que terminaram o curso tenham vontade de ir trabalhar para essas zonas sem médicos, ao invés dos sítios onde já há médicos suficientes. É um dos grandes desafios para os políticos.
Tem uma proposta de como estimular essa ideia?
É muito complicado porque forçar os médicos a ir trabalhar para onde não querem pode não dar bons resultados. Podem preferir trabalhos inferiores na cidade a ir exercer para uma zona rural. Por outro lado, há uma grande probabilidade de que vão parar a essas zonas os médicos que, por exercerem mal a sua profissão, não consigam arranjar trabalho na cidade. É também difícil enviar um médico já com família formada para um sítio em que a escola já fechou por falta de alunos. E os jovens solteiros não querem ir para um sítio onde, por haver poucos habitantes, torna-se mais difícil encontrar um companheiro e formar família.
Acho que a solução pode passar por descentralizar os estudos de medicina, para que estes não sejam apenas nas grandes cidades e à volta dos grandes hospitais. Outra solução é fazer uma formação específica a nível regional para aqueles que querem logo à partida tornar-se médicos de medicina geral, e assim nem teriam de abandonar a sua região para fazer os estudos, o que permitiria que no final do curso pudessem exercer medicina geral na sua região.
Quer continuar a fazer filmes de medicina?
No ano em que fiz “Verdade e Consequência” perguntavam-me se iria fazer um próximo filme também sobre medicina e a realidade é que fiz “Médico de Província”. Depois perguntaram-me se iria fazer um terceiro e eu disse não, mas acabei por fazer “Os Caloiros de Medicina”, que nem se foca tanto na medicina mas sim no ensino universitário. Hoje digo que não farei um quarto filme sobre medicina mas nunca se sabe.
Enfim, há realizadores que fazem sempre o mesmo tipo de filme e falam sempre sobre os mesmos temas. Talvez que eu só venha a fazer filmes que tenham um elo de ligação com a medicina! Porque a realidade é que é isso que me interessa e há tantas histórias diferentes a contar, que muitas vezes ultrapassam o tema da medicina. Por exemplo, “Os Caloiros de Medicina” fala muito das nossas expectativas quando somos jovens. Fala do problema que é mergulhar jovens com sonhos e com ambições, num concurso de rivalidade, quando podíamos simplesmente deixar os jovens procurar o seu caminho e decidir o que têm vontade fazer.
E sem revelar spoilers, porque deu aquele plot-twist ao final de “Os Caloiros de Medicina”?
Gosto muito de terminar os filmes com um final em que se consegue denunciar a falha no mecanismo institucional. Há sempre algo de duro nos filmes que faço, mesmo que seja romanesco e com momentos divertidos, a base é um tema duro e portanto sinto que devo oferecer ao espectador um fim honesto. Gosto da ideia de desmontar a engrenagem do sistema, porque quem quer ser médico deve tornar-se médico e na realidade o concurso muitas vezes impede isso. Há pessoas que têm um dom para a medicina, querem exercer medicina e no final ficam de parte. Eu queria transmitir que se tivéssemos menos rivalidade e mais entreajuda, provavelmente encontraríamos um sistema melhor e mais humano que nos permitiria ter melhores médicos e não melhores vencedores de concursos de acesso.
Para além da segunda temporada da série, que próximos filmes é que está a desenvolver?
Para além de mais um filme de medicina, estou a escrever um argumento sobre o significado de ensinar, de transmitir conhecimento aos outros. Será um filme sobre os professores de liceu, com vocação para ensinar as crianças e os jovens. É uma decisão nobre, mas que ao mesmo tempo dá que pensar, nestas pessoas que em crianças andaram na escola e que ao fim de 60 anos ainda estão na mesma escola, só que a ensinar as novas gerações.
“Verdade e Consequência”, “Os Caloiros de Medicina” e “Médico de Província” encontram-se disponíveis em VOD.