“Rainha de Copas” foi o candidato da Dinamarca ao Óscar de Melhor Filme Internacional e chega aos cinemas portugueses esta semana. Conversámos com a realizadora May el-Toukhy…
“Rainha de Copas” explora um lado negro da psicologia, das mentiras familiares, da sedução e dos abusos. De onde surgiu a ideia e como funcionou o processo de co-escrita?
Eu e a minha co-argumentista, Maren Louise Käehne, queríamos investigar o tema do poder. A responsabilidade que vem de estar no poder e, por vezes, o direito que se lhe pode seguir de estar no topo da hierarquia – quer seja em família ou na sociedade. Inspirámo-nos no mito de Phaedra e nas histórias dos jornais sobre madrastas/professoras que têm casos com enteados/alunos do sexo masculino.
Ver também: “Rainha de Copas” – Carta Fora do Baralho
Ao referir relações entre professoras e alunos, fez-me pensar no casamento do Presidente Macron…
Ficámos perplexas com a aparente romanização, nos artigos e outras histórias que lemos sobre essas relações. Foi uma narrativa que difere muito das histórias de padrasto/enteado que lemos, onde a relação é mais definida como desigual e completamente errada. E queríamos criar uma história onde as apostas e as consequências para as nossas personagens fossem tão graves como se os géneros fossem invertidos. A forma como trabalhamos, eu e a Maren Louise, é muito colaborativa. Escrevemos o enredo juntas e revezamo-nos na escrita dos rascunhos. No final, já não sabemos quem escreveu o quê.
Relativamente às agressões sexuais contra os homens e as relações tóxicas, concorda que continua a ser um grande tabu para a sociedade discutir estas questões?
Sim, é um grande tabu. Porque historicamente a ideia de um homem ser a vítima de uma relação sexual desvirtua a forma como tradicionalmente vemos a masculinidade. E, portanto, também parecia ser um tema potente a explorar. Quem é a vítima, quem é o espectador e porquê? Esse tipo de questões que discutimos vezes sem conta, durante o processo de escrita, filmagem e edição.
Ao longo dos anos trabalhou várias vezes com Trine Dyrholm. Escreveu a protagonista com ela em mente? Como foi dirigi-la num papel tão forte e também com algum conteúdo sexualmente gráfico?
A Trine Dyrholm ficou ligada ao projeto desde muito cedo, e sabia que seria ela a interpretar a personagem da Anne, mesmo antes de o guião ser escrito. Acredito que não poderia ter feito o filme sem ela. Ela é uma atriz tão destemida e isso era algo muito necessário para todos nós, também por causa das cenas de sexo muito gráficas. A minha ambição era tornar as cenas de sexo muito brutais e reais – e pouco românticas.
E todos os atores, incluindo a Trine Dyrholm, fizeram parte do processo de ensaio antes da filmagem dos mesmos. Eu queria que os atores se sentissem salvos e bem tratados quando filmássemos as cenas. Em muitos aspetos comecei a tratar essas cenas como se fosse filmar um acidente de carro muito desafiador tecnicamente – onde a segurança individual de cada ator e membro da equipa é fundamental.
Como foi trabalhar em “Borgen”?
Eu gostava muito de trabalhar em “Borgen”. E tenho trabalhado com o Adam Price (criador de “Borgen”) na série “Ride Upon the Storm” desde então. Gosto de trabalhar com grandes grupos de atores – essa é uma das regalias de fazer televisão.
De que forma sente que evoluiu como realizador desde a sua primeira longa-metragem “Long Story Short” até “Rainha de Copas”?
Boa pergunta. Os acontecimentos na minha vida privada mudaram-me muito desde “Long Story Short”. Mas em muitos aspetos, sinto-me a mesma. Penso que sou uma realizadora bastante versátil. Não tenho faço apenas um género. Tento sempre encontrar o género que melhor se adequa a um determinado tema ou temas que quero explorar. Em “Long Story Short” o género era a comédia, com laivos de drama. E em “Rainha de Copas” era puro drama, que eu sentia que se encaixava melhor na história.
Qual foi a sua reação ao ver o seu filme ser aclamado globalmente e apresentado pelo seu país como candidato aos Óscares?
Tem sido uma viagem tão emocionante com este filme. E sinto-me muito abençoada e privilegiada por poder partilhar o meu trabalho com um público mundial. Penso que atingimos um ponto sensível com este filme – fizemo-lo no momento certo. E sempre me mantive fiel à minha visão. Nunca me senti obrigada a censurar as minhas ambições artísticas e por isso estou muito orgulhosa – e acima de tudo grata pela atenção que esta história tem recebido.
Existe algum “ator/atriz de sonho” que gostasse de dirigir? E uma história que sempre quis retratar no grande ecrã?
Eu adoraria trabalhar com a Meryl Streep. E há demasiadas histórias para citar apenas uma. Mas estou eternamente interessada em contar histórias sobre a condição humana e em explorar personagens femininas complexas.
Já está a desenvolver um próximo projecto? Foi de alguma forma afectado pela atual pandemia?
Estou a trabalhar num filme chamado “Lioness” sobre a autora Karen Blixen e a sua vida no Quénia entre 1913 e 1931. A ideia de fazer um filme sobre ela não me ocorreu durante a pandemia, começou muito antes, mas penso que a maioria dos cineastas está a refletir sobre que histórias devemos contar no futuro, agora que carregamos nos ombros uma crise global. Que histórias são necessárias neste momento? Que rumo está a tomar o mundo?
“Rainha de Copas” será exibido no Cinema Ideal em Lisboa a 14 de Junho às 21h30. O filme já está disponível em streaming via Filmin e nos videoclubes.