O AMC já se provou capaz de desenvolver excelentes séries. Curiosamente, a maioria delas apenas atingiu a fama global depois de 1 ou 2 temporadas do mínimo reconhecimento. O progresso pode ser definitivo. “Lodge 49” pode ainda ter muita coisa para contar.
Jim Gavin será certamente um nome que não cairá no esquecimento. O criador da nova série original do AMC é um completo desconhecido e embarcou (suponhamos) no seu projeto mais ambicioso. Guardadas as devidas proporções, trata-se de um pequeno e faminto Vince Gilligan à procura da melhor maneira de simultaneamente se expressar nas pequenas telas e colocar as transcrições interrogativas das mesmas na cabeça do espectador.
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“Lodge 49” acompanha o jovem ex-surfista, inválido e desempregado Sean ‘Dud’ Dudley no seu triste quotidiano após a morte do pai. Procurando o mais conveniente meio imediato de sustento, este descobre uma fraternidade local, na qual se insere e inicia um processo de autodescoberta.
Se há coisa que a série faz bem é satirizar a tão instável coletânea de normas pseudo-complexas que as sociedades atuais tendem a priorizar para o cumprimento da felicidade (ou lá o que isso for). É exatamente disso que “Lodge 49” se trata – uma viagem simultaneamente leve e dura pelos caminhos individuais dos seus personagens, enquanto estes lutam contra intermináveis dívidas, problemas conjugais, profissionais e as suas próprias éticas, esmiuçando a validade das mesmas e o fator de responsabilidade que nelas se integram, divagando sobre as consequentes causas do rumo indesejado e inexplicavelmente imparável. Tanto o protagonista como os personagens secundários tendem a procurar na mais mundana ação ou na mais excitante e ridícula surpresa a luz que lhes dará algo ao qual se poderão agarrar eternamente, lutando pela maior tranquilidade possível.
Parece que é de propósito. Já tendo visto “O Grande Lebowski” inúmeras vezes (e de curiosamente ter escrito sobre o mesmo há pouco tempo), o AMC dá-me uma série deliciosamente semelhante, mas com inúmeros traços de originalidade. Para todos os efeitos, o protagonista é uma imitação fácil do nome do personagem do Jeff Bridges no filme de 1998. Física e ideologicamente falando, o Dud é um sucessor do Dude. Um sucessor mais agressivamente deprimido, inconsequente, carente, vítima das recentes infelicidades tragicómicas da sua vida, mas um jovem-adulto preso às suas próprias ilusões e que constantemente evita o cumprimento das inevitáveis responsabilidades da vida. Quando, por alguma razão, é atraído pelo chamamento humilde e despretensioso de uma paróquia, sem exatamente saber porquê, Dud acha novas vocações diárias, compondo uma lista de inúmeras boas intenções. Boas intenções que, de forma geral, posteriormente se convertem em acontecimentos embaraçosos.
A série decorre com o dito comentário social e com o estudo do personagem central, assim como as respetivas interações com os personagens secundários, entre estes destacando-se a irmã e dois recentes amigos. Enquanto ameniza o espectador através de uma banda sonora repleta de serenidade e ecleticismo, e uma fotografia suavemente dourada, respetiva às perspetivas religiosas do criador e dos personagens. É muito satisfatório ver uma série cuja premissa assenta numa filosofia tremendamente desconhecida, mas extremamente profunda, significativa e convidativa. Sobretudo para quem não se identifica com os ideais da Igreja Católica, cuja crescente impopularidade atual é resultante das suas próprias hipocrisias, coisa que a série satiriza de modo impecável. Assim como a sua abordagem a temas como o destino e a imprevisibilidade do Universo.
E as interpretações são a cereja no topo do bolo. O Wyatt Russell pode demonstrar muitas heranças físicas e comportamentais do pai, mas o ator de 32 anos terá certamente uma carreira cheia de diversidade. Como já o descrevi, acrescento apenas que o Dud não é um protagonista, por vezes, totalmente defensável. Muitos são os momentos em que desculpamos uma maior inconveniência ou um comentário antipático, pois conhecemos perfeitamente aquilo pelo qual o personagem está a passar. Contudo, são também progressivos os egoísmos em que este age somente de cabeça (muito) quente, esquecendo-se dos dramas pessoais alheios. A sua personalidade é toda ela uma linda imperfeição.
Não gostei do que fizeram com a Jocelyn Towne. Mal se dá de caras com a personagem, apercebe-se imediatamente que há ali um enorme conflito interior, uma solidão, um constante desconforto, embaraço e vergonha. O arco da personagem tem peso e podia acompanhar o deslocado protagonista pelo resto da história. Infelizmente, esta é largada a meio da série, quando podia ter muito ainda por dizer.
A Sonya Cassidy está excelente. Embora nunca tenha visto “Humans”, facilmente fiquei fã da atriz. A sua interpretação é rígida, cínica, deprimida, apática e simultaneamente explosiva e passivo-agressiva. A personagem é geralmente a voz da razão na vida do irmão e paralelamente uma ótima presença antagónica. Dissipa um humor insolente, provocador, revoltado e temperamental único. Há apenas uma cena que a envolve no início da série que achei absolutamente aleatória e ridícula. Mas nada que tenha posto a sua identidade em causa.
O Brent Jennings é uma presença fraternal extremamente carismática. Depois de testemunharmos inúmeras inacreditáveis injustiças na sua vida, o personagem parece estar constantemente à beira de um colapso nervoso. E é muito satisfatório vê-lo a ter sucesso, mesmo que até lá tenham sido necessários muitos constrangimentos e diversos pensamentos típicos de um anti-alívio cómico. Acompanhar o crescimento da sua relação com o Dud é muito divertido e envolvente. Temos aqui mais uma amizade televisiva muito bonita. Mas o que prende mais o espectador é a sua amizade com o Kenneth Welsh, cuja personagem é a personificação de “primeiro estranha-se e depois entranha-se”. Inicialmente, não achava propósito no seu arco e nas suas quebras insanas. No decorrer de “Lodge 49”, fica exposta a sua fragmentação consequente de uma vida repleta de fracassos e momentos perdidos. E o resultado narrativo é um conjunto de cenas bastante comoventes e até tristes.
Porque é que alguém haveria de querer viver para sempre? Eu só quero viver a sério. Um bocadinho, aqui mesmo.
Fora um personagem que não passa de um irritante cliffhanger, todo o elenco está bem. O Brian Doyle-Murray, o Joe Grifasi, o Hayden Szeto e a Linda Emond estão todos competentes. O Eric Allen Kramer está ótimo, assumindo um papel exigente e líder do comentário que a série faz sobre masculinidade. O Bruce Campbell articula o seu texto com uma eloquência muito particular. O Tom Nowicki aparece pouco, mas regista a sua presença eficazmente e sentimos a sua falta depois dos poucos flashbacks. O Adam Goldey está engraçado, dentro da condição nervosa, parola e fraca do personagem. E o David Pasquesi está sensacional! Cheio de personalidade e cheio de conflitos. Elencos televisivos diversificados em 2018 não ficam muito melhores do que este.