“O Grande Lebowski” é um dos grandes filmes dos Irmãos Coen. Foi lançado no dia 6 de março de 1998 nos Estados Unidos, chegando a Portugal no dia 30 de outubro. 20 anos depois, o filme permanece engraçado, satírico e socialmente relevante. Vejamos porquê.
Para além de uma gema importantíssima na filmografia dos Irmãos Coen, chamativa não só para percebermos todas as imagens de marca da dupla de realizadores americana, mas também como uma contextualização histórica do seu país e das perspetivas quotidianas associadas pelos seus criadores. “O Grande Lebowski” acompanha o Dude, um hippie quarentão desempregado, despreocupado e um adepto de bowling e do mais básico convívio. Quando é confundido com um milionário e sofre a trágica perda do seu tapete, vê-se inserido num gigante mistério envolvendo dinheiro, corrupção, niilistas alemães, pornógrafos e uma hilariante falta de nexo.
Existem diversas razões para que a multidimensionalidade do clássico de culto dos Irmãos Coen tenha provocado uma enorme legião de fás que, desde 1998, vestem diariamente um robe bege, uns confortáveis calções, um par de sandálias confortáveis, uns óculos escuros que, quando singularmente acompanhados ao lado de uma barbicha despenteada e um cabelo comprido e encaracolado, perpetuam o visual de alguém que permanece para sempre nas memórias de uma pequena comunidade local e ignorantemente pacata ou de um enorme país obcecado por conflitos e preso no dia de ontem. “O Grande Lebowski” acompanha o seu sossegado e altamente carismático protagonista na sua demanda epicurista, ignorando quaisquer fenómenos prejudicais.
-Podes ter calma, meu?
-Sabes, essa é a tua resposta para tudo, Dude. Deixa-me dizer uma coisa. O pacifismo não é… olha para a situação atual com aquele camelo no Iraque. O pacifismo não é algo onde te devas esconder.
Setembro de 1991. Os Estados Unidos, juntamente com a França, o Kuwait, o Reino Unido e a Arábia Saudita, saíram há 7 meses de uma guerra contra o Iraque. O “melhor país do mundo” é governado por um confiante George H. W. Bush. Os que voltaram da Segunda Guerra e do Vietname observam no pequeno ecrã o relato jornalístico de eventos massivamente violentos se repetirem, como se os seus companheiros estivessem de novo a morrer e nada pudesse ser feito para os salvar. O Estranho inicia aquele voice over deliciosamente denso, relatando as peculiaridades e banalidades de uma Los Angeles sossegada e indiferente. Mais ou menos.
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Portanto, quem é o Dude nisto tudo? Qual é a razão da sua existência numa cidade que constantemente o julga com base no seu dia-a-dia? Para todos os efeitos, o adorável jogador de bowling é um desempregado inconsequente e indiferente para o sistema. Em qualquer sociedade ocidental como a norte-americana ou a portuguesa, trata-se um homem que merece ser vítima de escárnio e de todos os comentários desdenhativos. Por isso, pergunto: Porque é que gostamos tanto do Dude?
O discurso divagante conclusivo do Estranho sugere que a personagem de Jeff Bridges se trata quase de uma figura de martírio (mas crenças religiosas à parte). Para quê, não é? Para quê acompanhar uma pessoa que, no fim do dia, depois de ser enganada por um milionário fraudulento, usada por uma irresistível femme fatale, agredida por um policia corrupto, expulsa injustificavelmente de um táxi e testemunha da morte de um amigo, ainda é capaz de servir de exemplo para os ditos cidadãos superiores? Parece despropositado, certo? Mas não.
Eu apenas menciono isto porque, às vezes, há um homem. Não vou dizer um herói. Porque o que é um herói? Mas às vezes há um homem. E estou a falar do Dude. Às vezes, há um homem… bem, ele é o homem para o seu tempo e lugar. Ele encaixa-se aí.
O Dude não é uma figura sacramental, mas sim o membro negligenciado, irresponsável, preguiçoso, indiferente e despreocupadamente feliz de uma sociedade presa nos horrendos atos do historial tragicómico de um país desregulado. O canto essencial das humildes ou excêntricas comunidades que merece mais atenção nos devidos momentos. O pilar dos valores (ou a pacífica inexistência deles) que sustentam o controlo coletivo, distanciando a probabilidade de uma inevitável explosão. O derradeiro exemplo inconscientemente sábio que nos ensina sobre o sentido da vida (seja lá o que isso for).
E, tal como as bolas de bowling e as rodas secas de palha dos vastos desertos californianos, “o Dude aguenta-se”, procurando continuar a andar em diante, de modo repetitivo e desinteressado por excitantes aprendizagens diárias, derrubando os eventuais e chatos pinos pelo caminho. Voltando tudo ao mesmo – àquela busca de felicidade relativa. Dude é um Buda dos Anos 90 para o seu país. Não é à toa que o Dudeísmo tem um aglomerado atual de 455 505 seguidores.
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Qual a conclusão mais fácil de obter? Os Irmãos Coen sabiam exatamente o que estavam a fazer – escrever e realizar um filme aparentemente sobre nada que acaba por dizer muita coisa. Não só “O Grande Lebowski” é o evento cinematográfico responsável pelo nascimento de um novo género – o slacker noir (respeitosamente inspirado nos filmes dos Anos 40 e coletor de imensos referências cénicas) –, que mais tarde se popularizaria em filmes como “Vício Intrínseco”, do Paul Thomas Anderson, mas o filme é também uma jóia exemplar de desenvolvimento de ambiente e de personagens, graças a uma das mais ricas bandas sonoras de década, a diversas composições visuais simplistas e eficientes e sequências psicadélicas fascinantes.
Surge uma urgência quase irracional de procurar as fontes de construção do protagonista do filme de 1998. Juntamente com uma origem semi-ambígua, somado àquele estranhamente apetitoso White Russian, um gosto significativo por Bob Dylan e uma personalidade recorrente sobretudo em filmes de hippies, conclui-se que o Dude não se trata mais do que um envelhecido e ultrapassado ativista dos Anos 70 que se terá eventualmente revoltado contra a permanência americana na Guerra do Vietname. E que, por alguma razão, mantém na parede da sua sala-de-estar um curioso poster do Richard Nixon. Aparte desta fascinante identidade, Jeff Lebowski foi inspirado em Jeff Dowd, membro e líder dos Seattle Seven. Se se recordam, o nome deste grupo era também o de uma das muitas aventuras do protagonista no meio musical. Google it!
A sua revolução acabou, Sr. Lebowski. Condolências. Os vagabundos perderam. O conselho que lhe dou é fazer o que os seus pais fizeram. Arranje um trabalho, senhor. Os vagabundos perderão sempre. Está-me a ouvir, Lebowski?
O mundo enlouqueceu todo?! Sou o único por aqui que não se está a cagar para as regras? Marca 0!
No meio de tanto desenvolvimento temático graças a um dos textos mais absurdamente engraçados dos Anos 90, bem que podemos afirmar que “O Grande Lebowski” é tudo menos um filme pretensioso. Sobretudo graças à sua massiva quantidade de personagens caricatos, propositadamente afetados e constantemente ridicularizados. Desconstruindo o típico modelo do solitariamente esbelto protagonista americano, focando-se, ao invés, em carecas, barbudos, sebosos, obesos, predadores sexuais e presenças masculinas tóxicas no geral.
Precisamente por se inserirem na descrição de pessoas comuns (ou não) afetadas pela incapacidade de olhar para a vida de frente, matando as (baixas ou elevadas) expectativas sobre aquilo que esta lhes espera: um veterano de guerra cegamente descontrolado e aparentemente à beira de uma rutura nervosa, provocada também pela negação do fim de um casamento; uma misteriosa e excêntrica artista presa à sua arte fechada, opiniões incontornáveis e costumes bizarros; niilistas alemães que, para além de não largarem aquele sotaque ridículo, não vêem outro método de afirmação senão a manifestação de ódio em território terceiro; um milionário ignorante e extremamente gabarola isolado com as próprias mentiras e autoelogios e… um Donny. Sendo este último o único ponto fraco desta pérola da comédia negra americana.
Mesmo a justificada (porém injusta) indiferença dada ao personagem de Steve Buscemi, quando chegamos àquele momento em específico, o impacto é praticamente nulo. Se, tal como o Dude e o Walter, o público ficasse igualmente entristecido e/ou perturbado depois daquele infeliz encontro, “O Grande Lebowski” seria um filme perfeito. Pois, de resto, pontos negativos são inexistentes.
-Porra, Walter.
-Vá lá, Dude. Caga nisso, meu. Vamos jogar bowling.
No fim, não há uma lição aprendida. A história é espetacular, mas não tem uma moral. Mesmo com todos os eventos estranhos, não se registam consequências de um duro processo psicológico no Dude ou no Walter, nem muito menos num Jesus Quintana ou num cowboy de bigode farfalhudo e de chapéu cerrado. A única lição é: “A vida continua. Vamos jogar bowling. Vamos ao cinema. Vamos para casa tomar um banho de imersão ao som de baleias. Vamos simplesmente viver.”