“Maria, Rainha dos Escoceses” é o primeiro filme da realizadora britânica Josie Rourke e conta com um elenco de luxo encabeçado por Saoirse Ronan como Maria da Escócia e Margot Robbie como Isabel I de Inglaterra. Estreia esta quinta-feira, 17 de janeiro, nos cinemas portugueses e promete agitar as hostes.
Josie Rourke é uma mulher do teatro, dedicada durante muitos anos a ser diretora artística do teatro londrino Donmar Warehouse. Pode parecer estranho mas quase que se pode traçar uma linhagem de cineastas britânicos que fizeram o mesmo percurso.
Se não se quiser mencionar todos eles, pode falar-se apenas de Sam Mendes, que foi o anterior diretor artístico de Donmar Warehouse e a quem Josie substituiu no mesmo papel, tornando-se na primeira mulher a dirigir um grande e prestigiado teatro de Londres.
O enquadramento do percurso da realizadora é importante para a compreensão da história de “Maria, Rainha dos Escoceses” e ajudar a perceber, por exemplo, a escolha de um elenco tão diverso que pode parecer intencional que assim seja quando é tão natural como respirar.
Se atualmente essa diversidade é procurada de modo a tornar os filmes apelativos e integrativos, para Josie a escolha é, como ela própria refere, daltónica e é por isso que nos papéis que historicamente pertencem a brancos (porque na vida real assim o foram) existem negros a interpretar.
Esse fator não é estranho ao teatro e muito menos à carreira de Josie em teatro, cuja perspectiva tende a ser, claro,a de uma mulher e, se se quiser sucumbir a algum rótulo, tendencialmente feminista. Não é por acaso que no seu teatro já foi encenada uma trilogia de de Shakespeare totalmente composta por atrizes.
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A questão da fidelidade à História em “Maria, Rainha dos Escoceses” nem sempre se pode colocar de forma muito linear, até porque Rourke quer mostrar um outro lado das mulheres que compõem o filme. É, até, baseado numa biografia de John Guy, “Queen of Scots: The True Life of Mary Stuart”, com quem Rourke colaborou de muito perto.
A biografia de Guy mostra um outro lado da conhecida história de Maria Stuart, que tradicionalmente é tratada como uma vil traidora e aqui é mostrada como alguém que, afinal, foi vítima dos seus próprios maus julgamentos, impetuosidade e traição dos homens que compunham a sua corte.
A partir dessa biografia, Josie Rourke convidou o argumentista de “House of Cards”, Beau Willimon, para delinear o texto que daria origem ao filme, já que a biografia tem por base documentação histórica. Muito dela é mencionada ligeiramente no filme mas na realidade não é essa fidelidade às fontes que está no centro do filme, embora não seja totalmente rejeitada.
De um modo bastante óbvio, o que importa em “Maria, Rainha dos Escoceses” é a relação entre as duas rainhas e o modo como a sua posição enquanto mulheres num mundo predominantemente masculino determina o seu percurso. Em ambos os casos, esse fator determinou tudo e é essa visão a que Rourke dá destaque, sobretudo numa certa irmandade feminina.
Maria Stuart procura o apoio de Isabel I não como monarca mas como mulher e a cena do encontro entre ambas é o culminar dessa visão, apesar de historicamente esse encontro nunca se ter concretizado. Nem sequer é revelante, ou assim parece, o facto de uma ser católica e a outra protestante.
É essa visão cinematográfica que torna o filme verdadeiramente interessante, não se trata aqui de fazer uma ligação de profundidade histórica mas uma história de grandes mulheres que depois são apenas mulheres. Por isso, poderá parecer estranho que Maria Stuart seja mostrada menstruando ou agraciada com sexo oral: são questões que tradicionalmente não se tratam quando se fala de mulheres daquela época.
A questão é que Josie não está propriamente a fazer um filme histórico mas sim um filme que trata de temas que são do Renascimento mas com facilidade se aplicam na atualidade, como por exemplo o facto de Isabel I se encontrar muitas vezes alheada das grandes decisões do reino e colocando tudo nas mãos do seu conselho todo constituído por figuras masculinas.
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Maria Stuart queda-se vítima igualmente, na visão do filme, de uma estratégia que penaliza as mulheres que detêm cargos importantes, sobretudo porque à época eram vistas como fracas e histéricas, vítimas dos seus humores femininos. É exatamente por isso que a rainha dos escoceses ficou retratada como tal ao longo da História e segundo a versão do filme e da biografia que lhe está na base tratar-se-ia de uma campanha de desvalorização propositada que veio, aliás, a culminar na sua execução, após 18 anos de prisão em Inglaterra.
A diversidade na corte da época era uma realidade e alguns elementos que podem parecer estranhos são na realidade verídicos, como a relação homossexual de Lorde Darnley com David Rizzio. Muitas das situações observadas no filme podiam até ser ilegais no papel mas muitas delas eram toleradas nestes círculos sociais.
“Maria, Rainha dos Escoceses” é um projeto muito ambicioso que vive da sua imensa beleza visual, Josie Rourke não se coíbe em filmar a fogosidade de Maria da Escócia e Isabel I em cenários de contraste e pomposidade mas em inúmeros casos a edição do filme parece sofrer cortes que tornam a história apenas uma sequência de imagens sem tempo para respirar.
Muitas vezes, de facto, as sequências parecem encenações teatrais no modo como é aplicada e filmada a luz, na colocação dos personagens em cena, imóveis, belíssimos, verdadeiramente renascentistas, como que fixados na História por um grande pintor.
Essa beleza visual torna-se apenas vaidade, tendo em conta que depois o filme se perde em insistir demasiadas vezes na tonalidade humana de ambas as rainhas (e refere-se aqui o facto de ambas serem consideradas rainhas porque Maria Stuart era considerada legítima herdeira do trono) e conseguir concentrar a imensa informação que sente que tem de transmitir.
Por um lado, pode ser apenas a estranheza de nunca se ter visto uma Isabel I tão frágil, doente, arrependida, porque a visão da rainha está frequentemente voltada para a sua decisão de não casar e não ter filhos como posição estratégica de força inquebrável.
“Maria, Rainha dos Escoceses” cai no extremo oposto de mostrar quase só as fraquezas e de praticamente cansar o espectador com a menção da falta de filhos, do isolamento e solidão, das características masculinas dessas decisões. Torna-se até um pouco vitimizador mas não deixa de ser uma opção respeitável, a forma de o mostrar é que pode não ter sido a melhor.
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Por outro lado, Josie Rourke quis mostrar uma Maria da Escócia como mulher livre e a completa cisão entre ambas as mulheres é demasiado vincada: Maria surge de cabelo solto, em festas na intimidade da corte, permissiva, viva, impetuosa, apaixonada, em sequências claras; Isabel I surge quase sempre preocupada, triste, abatida, apesar de se lhe admitir igualmente intimidade.
Entre as intenções de Josie Rourke e a concretização do filme há por vezes um hiato e nem o luxo das suas escolhas inteligentes consegue que se feche os olhos ao facto de como falha na prática o que era intenção.
“Maria, Rainha dos Escoceses” não é tempo perdido, tem na sua génese uma visão nova a que a realizadora alude muitas vezes. A visão feminina sobre uma história tantas vezes contada por homens, a necessidade de mostrar mais ângulos de um mesmo acontecimento sem necessariamente fazer uma reconstrução histórica exaustiva.
Josie Rourke refere também que a sua visão de Shakespeare no teatro é a de trazer à luz do dia temas que são relevantes hoje ainda nas linhas daquele e outros autores que escreveram há muitos séculos atrás.
Trata-se de reconhecer na sociedade renascentista os temas comuns a todos, transversais aos séculos porque são universais e identificáveis tanto em reis e rainhas como nos plebeus.
Reconhecer todos estes elementos em “Maria, Rainha dos Escoceses” é o passo para lhe reconhecer mérito mas não é suficiente para fazer dele um filme consistente e regular.
Visualmente belo, bons enquadramentos, boas intenções, boas ideias mas não necessariamente concretizadas de maneira a que o espectador se sinta compelido. Saoirse Ronan e Jack Lowden destacam-se do elenco em geral por serem excepcionais, Margot Robbie nem sempre está inspirada a fazer o seu melhor, oscilando entre momentos muito bons e outros que roçam o ridículo.
Grande banda-sonora de Max Richter, recorrendo a idealização da realizadora trazida do ambiente do teatro, sobretudo pungente nas cenas de batalha, com o ribombar vigoroso dos tambores.
No final, fica aquela sensação incompleta, mesmo que racionalmente reconhecendo que se trata de uma boa primeira obra que pode e deve abrir o caminho para filmes futuros.