Com Ethan Hawke num dos seus grandes papéis, No Coração da Escuridão é uma história de crença e auto-controlo. Tudo é o que parece se estivermos suficientemente atentos.
A história de No Coração da Escuridão promete bastante, logo quando se lê a sinopse, bem como a equipa que rodeia a construção do filme e que inclui os nomes de atores consagrados e outros em ascensão mas de grande relevância no cinema actual.
No Coração da Escuridão é uma viagem de cerca de duas horas a diversas questões que colocam a personagem do reverendo Toller (Ethan Hawke) numa espiral em direcção à perdição, a partir do momento em que conhece o marido de Mary (Amanda Seyfried), Michael (Philip Ettinger) e começa a acompanhá-lo a pedido da esposa.
Michael é um ativista e ecologista extremista que acaba por contagiar Toller com as ideias do fim do mundo e da contaminação do ambiente com raízes profundas fixadas no capitalismo selvagem. O reverendo descobrirá amargamente que é esse mesmo capitalismo que financia a igreja para a qual trabalha. Tal leva-o também a radicalizar-se e distanciar-se da igreja do espectáculo, da televisão, dos grandes eventos.
Ethan Hawke protagoniza o filme realizado pelo lendário Paul Schrader, interpretando o papel do reverendo Toller, um homem de fé que entra numa espiral de dúvidas e auto-destruição, naquele que muitos consideram ser uma das suas grandes interpretações em cinema. Já Paul Schrader tem um palmarés tão impressionante como argumentista e realizador que é normal haver expectativa para o seu novo filme, sobretudo tendo em conta o tema algo auto-biográfico que constitui o cerne da história.
Schrader teve educação calvinista rígida e até à adolescência nunca havia assistido a um único filme. A televisão era vista às escondidas da mãe em casa de vizinhos católicos. Assim, não deixa de ser curioso que para o seu mais recente filme o realizador tenha recorrido a temas que conhece perfeitamente bem por tê-los vivido na primeira pessoa. Por isso, a sua pesquisa, que costuma ser extensiva, passou mais pela vivência pessoal do que pela investigação intelectual.
Apesar do elemento íntimo e pessoal, No Coração da Escuridão não resulta próximo do espectador, algo que acaba por ser um denominador comum à cinematografia de Paul Schrader, muitas vezes apontado como se distanciando glacialmente do seu público. Aqui acontece precisamente isso, com um filme que tinha tudo para ser próximo mas que não o é. Trata-se da estratégia assumida do próprio realizador, que deu indicações a Hawke para que não desse tudo de si.
Rodado com mestria, é um filme dono de uma cinematografia clássica e impressionante, sobretudo porque se encontra completamente despido de artifícios e isso é visível tanto na escolha das sequências lentas e silenciosas como na ausência quase completa de banda-sonora e, já agora, de quase todos os tipos de sons estridentes. Nesse aspecto, estamos exatamente onde o realizador nos quer, retirados em silêncio como se de uma igreja anglicana se tratasse. Despidos de artifícios, barulho, tomando todo o tempo do mundo para meditar naquilo que se passa à nossa volta.
Todas as premissas do filme são, em teoria, interessantes e relevantes. Mas o que perpassa para o espectador é o imenso vazio de sentimento ou até de qualquer tipo de reacção. Acresce ainda o facto de parecer estarmos perante uma manta de retalhos temática que acaba por não ter elementos verdadeiramente consistentes que os consigam ligar.
Assim, em muitos momentos o argumento desenha com precipitação uma série de lugares-comuns que não seriam de esperar de alguém como Paul Schrader, autor dos argumentos de alguns dos maiores filmes da História do cinema, nomeadamente Touro Enraivecido, Taxi Driver e A Última Tentação de Cristo.
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É como se a todo o custo o filme não pudesse apenas versar acerca das questões de fé e dúvida pessoais e tivesse de conter espetáculo e temas prementes como a ecologia ou a relação da igreja com as grandes empresas poluidoras.
Em certa medida, essa ansiedade de colocar em cena mais do que é necessário entra em contradição com aquilo que o realizador já afirmou publicamente desejar mostrar em No Coração da Escuridão. Que é o despojamento, a meditação e o encontro com a fé no silêncio.
Se visualmente o filme nos mostra belíssimas e longas sequências de silêncio e tonalidades muito próximas do despojamento do preto e branco (que o realizador não utilizou por querer introduzir cenas que precisavam de cor), no conteúdo muitos dos elementos podiam nem sequer existir e não faziam falta para explicar ou empurrar o protagonista para o seu extremo.
A beleza do trabalho de Paul Schrader reside nos momentos em que o reverendo se encontra só na sua casa praticamente sem mobília, escrevendo memórias em papel que destruirá dentro de um ano, recorrendo ao claro-escuro, ao despojamento, à ausência de música, à hiperativação da sonoridade ambiente.
Esse ambiente austero e despojado parece convidar para Ethan Hawke brilhar, ele que também é ator de teatro. Realçando as mínimas expressões e, sobretudo, a ausência de sentimentos que acabarão por surgir no seu extremo no final.. Neste aspecto, No Coração da Escuridão é um misto entre os dois mundos, cinema e teatro. Pelo que a escolha de Hawke passará tanto pelo seu talento como pela sua versatilidade.
Esta é também uma obra sem tempo e em que o realizador muito quis retardar e aborrecer o espectador, num exercício que resulta muito mais intelectual do que artístico, dado que muitos dos longos diálogos não têm o conteúdo necessário para compensar a espera de quem vê. Se esse tomar de tempo poderia ser uma coisa boa, acaba por resultar pura e simplesmente numa espera vã. Os argumentos que se esgrimem não trazem novidades ou conclusões e parecem forçados.
Em contradição também com o facto de ser um filme que leva propositadamente o seu tempo para contar uma história, aquilo que conduz Toller até à quase perdição desenrola-se atabalhoadamente e de forma muito rápida e até àquele ponto não existem indícios do desespero que o reverendo diz sentir e que é o que dá sentido à sua vida.
Assim, se por um lado No Coração da Escuridão é uma excelente oportunidade para assistir a uma grande actuação de Ethan Hawke e a um filme clássico na sua realização e fotografia, a realidade é que parece tratar-se de vários tipos de filmes a decorrer ao mesmo tempo mas não ligados entre si.
É como se Paul Schrader se perdesse no deslumbramento pelas belas imagens, pelos enquadramentos perfeitos, pelo jogo entre sombra-luz e da sua relação com o lado lunar dos seres humanos e não conseguisse passar à prática aquilo que tinha proposto em teoria.
Assumidamente um estudioso do cinema e tendo já sido também crítico, aquilo que resulta deste seu filme é uma tentativa de vários caminhos diferentes sem necessariamente escolher qualquer um deles de forma clara. Para o espectador, fica uma sensação de obra incompleta. Não pela falta de respostas ou daquilo que fica para a imaginação de cada um mas porque não sabe muito bem qual o motivo de tanta espera infrutífera.