We Are Who We Are | As vidas (i)rreais de Luca Guadagnino

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“We Are Who We Are” é a série com que o realizador italiano Luca Guadagnino se estreia em televisão, numa parceria entre a HBO e a Sky Atlantics e, diga-se com toda a franqueza, que estreia esta!

Tem todos os elementos com que Luca tem estabelecido a sua imagem de marca, mas não é definitivamente uma obra de conforto e de mais do mesmo, muito pelo contrário.

O desconforto é, aliás, o leitmotiv que dá origem à série, no meio do enorme turbilhão de emoções que o próprio realizador atravessou. É um trabalho catártico em que notoriamente Guadagnino encontrou uma casa segura para explorar a sua reconhecida liberdade criativa.

O realizador reconhece e agradece publicamente à HBO pelo apoio que lhe concedeu e não será para mais: a base área que ia ser usada para as filmagens foi negada à última da hora, depois de o governo norte-americano ter conhecido a fundo o guião da série (e as inevitáveis críticas subjacentes). O canal construi-lhe uma de raiz, em Chioggia.

“We Are Who We Are” decorre em Itália e conta a história de um conjunto de militares norte-americanos e suas famílias no contexto daquela base aérea. Foca-se sobretudo no personagem de Jack Dylan Grazer, Fraser, e na fascinante estreante Jordan Kristine Seamón, que interpreta o papel de Caitlin (ou Harper).

Fraser é filho da coronel Sarah (Chloë Sevigny), casada com Maggie (Alice Braga) e é, sem dúvida, o mais excêntrico de todo o conjunto, num primeiro momento. O que a série desmontará em momentos subsequentes, a seu ritmo, é que todos guardam os seus segredos e Fraser acabará por se mostrar o mais inofensivo dos excêntricos.

“We Are Who We Are” é um festival de bom gosto do primeiro ao último dos seus 8 episódios, desde a hipnotizante banda-sonora (inevitável ficar fã de Blood Orange, a banda fetiche de Fraser, se ainda não se for), passando pelas brilhantes interpretações e acabando no requinte visual a que Guadagnino já habitou os espetadores – que deleite, aquela batalha de tintas em câmara lenta, no dia do encontro para paintball.

Quando ultrapassado o aspeto visual, pode surgir a questão: e o conteúdo, ele existe? Em aparência, “We Are Who We Are” assume um carácter fútil, mas é preciso olhar com atenção para aquilo a que a série se dedica.

As camadas são inúmeras e a base aérea em que os personagens se movem é um enorme tubo de ensaio sociológico, antropológico e de desenvolvimento pessoal, sobretudo para o grupo de jovens adolescentes que cresce num ambiente protegido e afastado do mundo “real”.

Em última análise, o fio que os une a todos é a busca de identidade e de experiências, a fluidez dos gostos, o sentimento de pertença numa vida que não conhece raízes profundas. Esta procura não é, contudo, exclusiva dos jovens, já que é possível encontrar as mesmas questões, anseios e procura nas mães de Fraser, por exemplo.

“We Are Who We Are” é também um belíssimo trabalho sobre a aceitação de todas as manifestações e, na realidade, a série isenta-se quase por completo de julgamentos ou moralidadezinhas.

Ao longo de 8 episódios que parecem insuficientes, o espetador apercebe-se que ninguém é o que parece e que quase todos os personagens acabam por contradizer na intimidade aquele é o seu eu social, sobretudo Sarah, que em público é figura de autoridade e em casa o exemplo máximo da indulgência para com o filho.

Há uma constante tensão (nem sempre saudável, mas libertadora), carregada de ansiedade e oposição, um contraste magnético poderoso entre interior/exterior, branco/preto, frente/verso, direito/avesso. Estes lados opostos complementam-se e o ponto máximo dessa fusão é o momento em que Caitlin e Fraser ouvem música juntos no comboio, formando um todo que se opõe.

“We Are Who We Are” é uma magnífica peça de arte em que há lugar para explorar a identidade não-conforme, o amor platónico, o amor físico sem culpa mesmo quando há traição. A traição, no fundo, no sentido estrito, não tem lugar aqui, tendo em conta a facilidade com que depressa não existem lados certos.

Nesta que é a primeira aventura de Guadagnino a filmar em digital, longe dos 35mm e da película (se não se contar com “Mergulho Profundo”), apenas existem lados que são, diferentes manifestações de uma só pessoa, lados que se complementam, lados que se espelham.

Os adolescentes citam poesia, ouvem Blood Orange e Klaus Nomi, na melhor das hipóteses, mas também citam Kendrick Lamar. Roubam-se beijos nos lugares mais insuspeitos e espera-se que a seguir alguma desgraça aconteça, é assim sempre com Guadagnino.

Chega-se ao fim à espera de que um enorme big bang destrua o mundo, paira sobre as cabeças de todos a constante ameaça de que vai acontecer alguma coisa em grande e, no fim, não aconteceu absolutamente nada. Ao acabar de assistir ao último episódio, pode-se questionar se não terá tudo sido uma perda de tempo.

Por outra, aconteceu a vida, dentro do tubo de ensaio, a vida das pessoas que saem para fazer experiências identitárias, ir a pé para um concerto em Bolonha porque não se tem dinheiro para mais, passear pela realidade local e descobrir que há mais mundos para lá do mundo.

Parte-se de uma visão quebrada, inutilizada, para se chegar ao deslumbre perante aquela que é uma das mais belas obras de arte que o cinema e a televisão produziram nos últimos tempos (a quanto equivalem 9 meses de confinamento?). São 8 episódios recheados de atores extraterrestres, mágicos, prontos para arriscar aquilo a que Guadagnino lhes propõe da maneira mais subtil e honesta.

Tudo em “We Are Who We Are” respira significado e desejo, estas são pessoas vivas em busca de um propósito, não estão perdidas como lhes querem fazer crer. Todos têm telhados de vidro, mas não faz mal porque todos têm telhados de vidro e a moralidade não entra aqui, em Chioggia.

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“We Are Who We Are” é terapia em tempos de pandemia, é cura quando se anunciam tempos imprevisíveis. Não faz mal, o que conta é experimentar e seguir, se possível encontrar um sítio ou pessoa seguros o suficiente para largar âncora. Partir novamente no dia seguinte não está fora de questão, todas as partes envolvidas estão de acordo.

Seguramente, um dos momentos altos da produção cultural deste ano, uma aposta segura para que o espetador se possa perder sem culpa e sentir que nem sempre controla a (sua) narrativa. Ainda bem.

A temporada completa de “We Are Who We Are” já se encontra disponível na HBO.

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