“A Grande Escavação” (“The Dig”) foi anunciado como um dos grandes trunfos da Netflix no que aos filmes diz respeito, apesar de inicialmente ter tido data de estreia nos cinemas, a 15 de janeiro.
Arquelogia da Vida
Fossem outros os tempos e este não estaria certamente já disponível nas plataformas de streaming, apesar de não cair propriamente na categoria do típico filme comercial – é um filme claramente de cinema.
A maioria do cinema britânico parece sempre conseguir contornar com sucesso essa categorização, mesmo quando roça a clara tentativa de tornar a história mais leve e agradável do que na realidade é – fica a questão: para que serviria a ficção, senão para, a tempos, ser escape e entretenimento?
“A Grande Escavação” tem a sorte de ser produção britânica, realizada por Simon Stone e baseada na obra homónima de 2007, da autoria de John Preston. Rodeou-se de um elenco de estrelas protagonistas, mas o elenco secundário é muito competente e entrega a sua dose de surpresa e qualidade.
Com Ralph Fiennes e Carey Mulligan nos papéis principais, “A Grande Escavação” passa-se no Reino Unido, Suffolk, circa 1939, e centra-se nos acontecimentos em torno da escavação arqueológica daquele que viria a ser conhecido como o tesouro de Sutton Hoo.
Basil Brown (Ralph Fiennes) é um arqueólogo amador e Edith Pretty (Carey Mulligan) uma mulher abastada que em tempos sonhou ser arqueóloga e procura alguém que dirija a escavação dos misteriosos montículos que ocupam parte da sua propriedade.
Os achados arqueológicos provenientes daquelas escavações viriam a ser um dos maiores achados da arqueologia daquele território e acabariam por mudar por completo a visão que se tinha na altura da chamada Idade Média ou das Trevas e isso é suficientemente visível no filme.
“A Grande Escavação” apresenta inúmeros pontos de interesse e, apesar de não se tratar de um documento maçador sobre a verdadeiro mundo da arqueologia daqueles tempos, não é propriamente uma obra prima.
Com muita documentação e caminhos entre mãos, parece não lograr decidir-se por qual o melhor caminho a tomar e acaba por dedicar-se a explorar superficialmente uma série de pequenas histórias secundárias que mereciam maior e mais aprofundada atenção.
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O elenco secundário encerra em si mesmo um enorme potencial de talento e acaba por dar ao filme alguns dos seus melhores e mais intensos momentos, sendo, por isso, inglório que se lhe dedique um olhar ou composição de personagens tão pouco desenvolvido.
“A Grande Escavação”, no seu todo, é um filme que interessa e mantém o interesse no espetador, consegue contar uma história entre o doce e o amargo sem cair no mau gosto, mas nem sempre consegue levantar voo em direção a paisagens mais elevadas.
Sendo o seu ponto focal a arqueologia, pode ainda deixar desiludidos os espetadores que contam encontrar um novo Indiana Jones, quando, na realidade, o amador Basil Brown ou mesmo o conjunto de investigadores locais, são o que há de mais próximo da arqueologia da vida real.
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Surpreendente é o facto de, estando a arqueologia no centro da história, este seja um filme que retira à arqueologia a visão eminentemente sobre a morte, o passado e o terminus e coloque o ónus no seu oposto: a vida e a perpetuação da memória.
Para quem pertença ao mundo da arqueologia, alguns momentos poderão ter maior significado emocional, sobretudo no belíssimo paralelismo das viagens que se encetam em vida e naquelas que os homens do passado deixam plasmadas para o futuro. Sobre uma viagem em particular, a autora do texto deixa em aberto para não relevar pormenores decisivos da história, mas destaca-a como um dos pontos altos do filme.
É uma bela viagem ao lado metafísico da arqueologia, mas, mais que isso, àquilo que junta as pessoas em tempos difíceis e aquilo que faz com que consigam sobrepor-se aos seus sofrimentos particulares para atingirem um objetivo comum e muito maior do que a sua realidade limitada no tempo e no espaço.
“A Grande Escavação” é um filme sobre a força de continuar a viver para os momentos em que se escolhe viver verdadeiramente em vez de viver do passado, o que é irónico porque todos os personagens vivem o seu momento para descobrir o que os homens do passado quiseram dizer com os vestígios que deixaram debaixo da terra.
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Uma viagem que tem em Carey Mulligan um dos seus pontos mais fortes, numa interpretação digna da mulher Edith Pretty, inabalável no seu querer, navegando não ao sabor dos ventos, mas ao sabor dos pressentimentos certeiros e da sua vontade e curiosidade férreas.
“A Grande Escavação” apresenta a visão da arqueologia em vida porque a arqueologia não é nada longe do presente vivido e isso está belissimamente patente no momento em que Peggy Piggott explica a Rory Lomax o que os arqueólogos encontrariam se os escavassem a eles mesmos.
Não sendo uma obra prima, “A Grande Escavação” é um presente cinematográfico digno, melodramático sem cair no absurdo ou no facilitismo, sabendo contornar algumas das ratoeiras apetecíveis dos romances, mas nunca conseguindo inteiramente decidir uma linguagem delineada e objetiva.
Dispersa-se por imensos temas que quer focar, nomeadamente as ocultas relações homossexuais ou o poder de decisão das mulheres num mundo dominado pelos homens, e embora isso seja compreensível acaba por tornar o filme mais difuso do que seria desejável.
Ainda assim, recomendável e disponível para ver na Netflix desde 29 de janeiro.