Sam Esmail não é propriamente um novato nestas andanças das séries, não sendo também um veterano. Assim, não deixa de ser surpreendente que com escassas temporadas de “Mr. Robot” e uma temporada completa da mais recente série da Amazon, “Homecoming”, tenham feito dele um dos nomes mais relevantes da praça.
Estabelecer mais do que esse amigável paralelo seria retirar a “Homecoming” o mérito de ser uma das mais interessantes e consistentes concretizações do panorama das séries de 2018. Ter Julia Roberts no elenco poderia até ter funcionado apenas como um isco importante mas a presença da veterana atriz trouxe não só uma excelente interpretação como marcou a sua estreia em televisão da melhor maneira.
A relação entre realizador e estrela nem sempre foi a mais clara possível mas para isso contribuirá o carácter esmiuçador de Esmail, que leva cada pormenor à mais ínfima preparação.
No final, o que interessa é que “Homecoming” é um luxo em todos os aspectos, a começar pelas interpretações e, por isso, a presença de Roberts nem sequer representa um cometa no elenco porque na realidade o destaque até vai para Stephan James, que interpreta o soldado que tem mais protagonismo na história, Walter Cruz.
O argumento, aliás, assenta como uma luva no trilho das teorias da conspiração que agradam a Esmail e, assim, apesar de parecer inicialmente simples, a trama densifica-se e começa a mostrar aquilo que se esconde sob a superfície.
Ainda mais interessante é o facto de o argumento se basear num podcast homónimo de suas temporadas, da autoria da Gimlet Media, bastante afamado, já com cerca de 3 anos e que tem no seu elenco estrelas que fazem com que seja uma maravilha de se ouvir: Catherine Keener, Oscar Isaac, David Schwimmer, Ami Sedaris e David Cross.
Não é imperativo ouvir para se perceber a série mas aconselha-se a audição porque é realmente muito bom e ajuda a entender, por exemplo, as opções audio da adaptação televisiva.
O argumento foi adaptado do podcast recorrendo à colaboração dos seus dois autores Micah Bloomberg e Eli Horowitz . Narra o percurso de Heidi Bergman como conselheira no programa Homecoming, as instalações onde são acolhidos veteranos de guerra norte-americanos para serem preparados para reentrar na vida civil.
Recorrendo a narrativa inversa, a série começa por mostrar a nova vida de Heidi, alguns anos depois de ter abandonado o programa, quando o Departamento de Defesa começa a questionar acerca da sua participação.
Nesta primeira temporada, à medida que o enredo se vai tornando mais denso, também as personagens vão ganhando mais corpo e a tensão gerada chega a extremos em que até o genérico causa um nó na garganta. Acrescente-se que o genérico tem a particularidade de não deixar o telespectador abandonar a série de imediato – quem não corta caminho através deles para passar para o episódio seguinte?
Assim, durante os créditos de cada episódio, Sam Esmail deixa o episódio correr, não necessariamente acrescentando mais história. Através de um controlo impressionante das expectativas consegue criar um ambiente irrespirável.
Depois de encher o espaço de música vibrante, longas sequências, grandes planos incómodos dos seus protagonistas, Sam retira todos esses elementos e deixa o espectador a olhar não sabe bem para quê. Não se passa nada ou será que se passa?
A primeira temporada de “Homecoming” é uma preciosidade de técnica e de atenção aos detalhes quase obsessiva. Sam Esmail quis homenagear os seus mestres tanto na realização como na banda-sonora e são vários os momentos em que quase, por exemplo, se pode jurar estar a ver um Hitchcock.
A banda-sonora é um monumento que muita gente achou ser impossível de levar a cabo, inclusivamente quem ficou encarregue de a compilar e é composta apenas por trechos de bandas-sonoras de filmes clássicos, o que significou ter de conseguir as licenças de todos os temas.
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Escusado será dizer que a banda-sonora é uma das grandes responsáveis para não se conseguir despregar os olhos da televisão e o esforço que parecia impossível de conseguir ganhou forma e tornou-se praticamente num personagem existente na série.
“Homecoming” é um portento de suspense e tensão e até parece incrível como pode caber tanta mestria em episódios de meia-hora. A opção do realizador em mostrar o passado em ângulo aberto de 16:9 e de estreitar a visão no presente para 1:1 torna a experiência ainda mais estonteante para o telespectador.
Igualmente curioso é que quando se refere aqui o presente ele é na realidade o futuro porque a história se passa já em 2022 e os factos do passado dizem respeito a 2018.
O facto de o espectador estar a ver uma história que oscila entre o presente e o futuro não é congruente com a estética retro escolhida pelo realizador, pelo que frequentemente se cairá no esquecimento da linha temporal real do argumento.
Sam Esmail filma dentro da estética das séries policiais dos anos 70, inclusive na escolha da fonte, e, por isso, a confusão que pode causar a percepção dessa estética e o choque com a realidade da história e seus protagonistas faz com que quem assiste se torne parte integrante da trama – e este apontamento é uma crítica positiva.
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“Homecoming” diverge em muitos aspectos de muitas das séries televisivas que surgem com voracidade nos tempos que correm. Os elementos que a distinguem das restantes têm sobretudo a ver com a visão de Sam Esmail e com a intenção clara daquilo que quer mostrar, com a sua inevitável liberdade criativa.
Não se esqueça, por exemplo, que o edifício onde se passa a maioria da série, que alberga o programa Homecoming, foi construído de raiz para a série e, por isso, aquela sensação de o espectador estar a observar uma casa de bonecas, uma experiência, torna-se por demais presente.
É nos pormenores que “Homecoming” capta o espectador para a sua teia, que é muito forte: quando se começa a ver é muito difícil parar. Os atores são todos, sem exceção, exemplares e a química gerada entre Julia Roberts e Stephan James é palpável.
A responsabilidade que recai muitas vezes sobre Roberts é totalmente justificada porque em momentos de grande tensão em que apenas resta um grande plano da sua cara a atriz mostra porque é uma estrela e vai mais além na sua carreira.
Aquilo que faz em “Homecoming “ é, ao mesmo tempo, notável em termos de prestação e uma transição a partir do cinema aproveitando aquilo que a televisão tem para oferecer na actualidade.
“Homecoming” é realizado por Sam Esmail e conta no seu elenco com Julia Roberts (Heidi Bergman), Bobby Cannavale (Colin Belfast), Stephan James (Walter Cruz), Shea Whigham (Thomas Carrasco), Sissy Spacek (Ellen Bergman), Hong Chau (Audrey Temple), Marianne Jean-Baptiste (Gloria Morosseau), Sydney Tamiia Poitier (Lydia) e Jeremy Allen White (Joseh Shrier), entre outros.
Está disponível na Amazon Prime Video desde novembro passado mas aconselha-se o seu visionamento em qualquer altura porque é uma das melhores séries do ano que agora findou.