“Pieces of a Woman”, a mais recente e certeira aposta da Netflix para o mercado dos filmes, é, à cabeça, um interessantíssimo exercício sobre o enorme papel das escolhas feitas na vida, quer em ações quer na decisão em não deixar que a angústia tome o lugar do renascimento.
No centro da história, encontra-se um casal jovem, Martha (Vanessa Kirby) e Sean (Shia LaBeouf), ela de classe média-alta, ele de classe trabalhadora com certo complexo de inferioridade, que prosseguem a sua vida diária e estão muito perto de serem pais.
Por esta altura, muito se tem falado sobre os cerca de trinta minutos iniciais do filme, mas seria redutor pensar-se em “Pieces of a Woman” e ver apenas essa fase inicial do filme, quando o seu todo é muito mais importante e envolvente que o acontecimento isolado.
“Pieces of a Woman” não é, de todo, um monumento eterno ao cinema, mas é um belíssimo e consistente estudo sobre o trauma, as feridas emocionais e o modo como cada um dos seus intervenientes lida com a dor, com a perda, seja ela de que natureza for.
O foco encontra-se na perda específica da protagonista, Martha, mas vai muito mais além dessa perda, já que é o momento que desencadeia toda a sequência de ruturas e crises no seio de uma família nada próxima e muito receosa de discutir aquilo que verdadeiramente importa.
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Longe dos melodramas do cinema norte-americano mais clássico, “Pieces of a Woman” faz questão de não transformar a dor num rebuçado amargo embrulhado em papéis vistosos e mantém o seu rumo de forma inteligente e cirúrgica até ao final.
Um filme sem cerimónias quanto à dor, não cai nunca no sentimentalismo barato, mesmo quando o espetador, acostumado à linearidade da maioria dos argumentos do cinema atual, pede e espera que o passo seguinte seja previsível.
Uma grande parte dessa imprevisibilidade tem a ver com facto de na realização se encontrar o cineasta húngaro Kornél Mundruczó, que ganhou notoriedade com “Deus Branco”, em 2014.
O argumento esteve a cargo da mulher do cineasta, Kata Wéber, e parte de uma premissa infalível porque tem por base a experiência da própria, simultaneamente sintoma de enorme coragem, mas também o garante de uma história sem artifícios e falsas promessas de futuro.
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Ainda que muitas das referências e ligações sejam óbvias e obsessivamente repetidas, não deixa de ser poético no seu desejo de estabelecer pontes emocionais a partir de uma ponte real e de querer passar para o espetador uma mensagem clara que não se vulgariza.
Sem receio de ser cruel e direto, “Pieces of a Woman” vive sedento da sua mulher central, Martha, interpretada por uma Vanessa Kirby de tirar a respiração. Representa, em primeira instância, mais uma prova e excelente sintoma da predisposição do streaming em correr riscos quando, na realidade, o cinema se vê inevitavelmente limitado nos seus moldes tracionais.
“Pieces of a Woman” não é um filme comercial, é uma corajosa aposta de Kornél Mundruczó para o seu primeiro filme em língua inglesa, e acaba por colocar Kirby e a eterna Ellen Burstyn na corrida aos prémios, respetivamente de atriz principal e secundária.
Ellen Burstyn é inevitavelmente forte no seu papel de mãe de Martha, Elizabeth, mas mantém-se à tona na primeira parte do filme como a mãe de quem se esperam determinados maneirismos e reações para depois detonar por completo, por exemplo, com uma cena em grande parte improvisada onde se confronta com Sean.
Vanessa Kirby é, contudo, a dona de todo o filme, embora a presença do agora indesejado Shia LaBeouf confira a “Pieces of a Woman” um lado completamente imprevisível e selvagem, típico do grande ator que é, mesmo quando esse aspeto acaba ligeiramente desperdiçado em alguns lugares-comuns que decorrem na segunda metade do filme.
Inevitavelmente irónico, há um momento tenso em que Sean agride Martha com uma bola de pilates, e o espetador pode espantar-se perante a oportunidade amarga e coincidência entre aquele momento e a realidade atual. Ao mesmo tempo, a presença de Shia acaba por desferir um golpe inglório num filme que não merece essa mácuao, mas são estes os sinais dos tempos.
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O desfecho de “Pieces of a Woman” é o coroar brilhante de um papel deslumbrante de Kirby, que passa por todos os estágios da dor, realista, tentando florescer quanto tudo fenece, que procura referências e perdão onde em tempos só existiu amargura e comiseração, passando pela apatia e melancolia.
Filmado em Montreal e Massachussetts, “Pieces of a Woman” é ainda um filme que transborda melancolia para as suas paisagens físicas, como que contaminadas pela tristeza incomensurável de uma única mulher cujas dores ultrapassam em muito a mera fisicalidade.
Quando Martha percorre as ruas, há inverno, há frio, há olhares infinitos para o horizonte que não retorna nada mais do que um eco vazio. Tropeçando em pequenos estímulos emocionais, Martha começa a recordar e a criar pontes de ligação entre a felicidade possível do passado e felicidade possível do presente.
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“Pieces of a Woman” não se perde na angústia, planta sementes, mesmo que recorra a alguns lugares-comuns facilmente perdoáveis. Estende a mão e admite que é humano e é feito de humanos que, por acaso, são excelentes atores e dão aqui mostras de uma enorme e apaixonada entrega.