Pergunto: O que torna um filme de super-heróis bom? O que o torna distinto dentro do género? Serão as cenas de ação? Será a caracterização traduzida da banda desenhada? Será o tipo de narrativa? Será o arco do protagonista? Será o vilão?
Qualquer que seja a resposta, podemos ter a certeza de uma coisa. Christopher Nolan cumpriu o requisito e acertou na mosca. “O Cavaleiro das Trevas” é uma obra-prima … por diversas razões. Primeiro, o inglês visionário responsável por toda a trilogia é um dos menores adeptos de efeitos visuais da indústria cinematográfica atual. Sempre que possível, Nolan prefere religiosamente o uso de efeitos práticos, ao invés de facilitar a criação de uma cena com recurso às imagens computorizadas. O uso de um set giratório em “Inception” é o melhor exemplo dessa qualidade.
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Juntamente com uma edição extremamente precisa e uma fluidez narrativa que exige mais que um visionamento, tal recurso transfere uma realidade indescritível de todas as sequências com adrenalina, imprimindo uma ação hipnotizante, palpável e que se mantém impecável até hoje. Todas as cenas de ação são esplendorosas. O combate entre os mafiosos e o Batman, o rapto do Lau, a perseguição do Batpod nos túneis e a investida do protagonista contra a equipa de SWATs. Cineastas de ação têm aqui uma aula.
Em segundo lugar, são raríssimos os filmes de super-heróis que tiveram um real sucesso ao adotar uma narrativa de crime, como o próprio material-fonte pede. As histórias do Batman sempre exigiram uma abordagem mais séria. Podemos ir mais longe. Qual é a base do estilo cinematográfico de “O Cavaleiro das Trevas”? “O Cavaleiro das Trevas” é, para além de um filme de ação e de super-heróis … um filme noir. É um filme que reflete a era de medo que se sentia na América pós-11 de Setembro, enquanto retrata os seus personagens e respetivas ações com uma ambiguidade moral, com a ajuda de uma atmosfera obscura, opressora e pessimista. A verdade é que é o único filme deste “movimento” (visto que tal nunca aconteceu). Mas se foi responsável por algumas mudanças no cinema foi principalmente para o género. A explosão do mesmo em 2008 e que prossegue atualmente reflete o estado de espírito de uma sociedade inteira descontrolada e desprotegida, vivendo sob constantes dúvidas e medo de sair à rua. Claro que hoje, sim, nem todos conseguem ser idênticos, alguns são apenas comédias de ação divertidas. Então, como conseguir isso?
O noir pode não ser necessariamente considerado um género, mas sim um estilo. O visual assenta, sobretudo em escuridão. Há excelentes fortes contrastes de luz, usados para representar o conflito interno dos personagens. E o movimento de câmara é um dos mais inteligentes, bem calculados e simbólicos que podemos encontrar. O noir não procurava contar histórias otimistas como se fez nos Anos 30, durante a Grande Depressão. A missão era outra – retratar autenticamente o pessimismo daquela era. Filmes do Anos 40, como “À Beira do Abismo”, demonstravam a angústia da vida pós-II Guerra Mundial. Enquanto que os dos Anos 70, como “Taxi Driver”, retratavam crua e fielmente os danos e a confusão moral provocada pela Guerra do Vietname. As pessoas encontravam-se divididas, desiludidas e desamparadas. O cinema também precisava de mudança. As mensagens bonitas de esperança tiveram de ser substituídas por reflexões complexas sem qualquer conclusão reconfortante ou recompensadora. Posto isto, “O Cavaleiro das Trevas” é instrumental para entendermos o pensamento frágil de um país dominado pela ameaça no início do Século XXI.
O arco do protagonista, para começar, mesmo não sendo tão profundo como o de “Batman – O Início” ou de “O Cavaleiro das Trevas Renasce”, estabelece as suas respetivas atitudes futuras. Bruce Wayne vê-se destroçado tanto pela perda como pelos inúmeros atos de violência. Apercebe-se do seu papel. Uma violência perversa e anárquica que não compreende, composta por atos horrendos de destruição e uma concretização levada ao extremo. Orquestrada por um terrorista misterioso, sádico, niilista, com tiques nervosos, claros antecedentes familiares e conjugais trágicos e um mórbido sentido de humor.
Batman não é um herói, nem o pode continuar a ser. A sua forma de justiça não é reconhecida devidamente. Mesmo com um clima de estabilidade relativamente superior, o público não gosta de ser condicionado por um vigilante, mesmo que este haja a seu. E, assim que este é abalroado pelos assaltos, assassinatos e atentados do Joker, desgosta ainda mais do Morcego. Bem, qual é a real diferença entre os dois para além do óbvio? A verdade é que as leis devem ser, por vezes, quebradas para que a justiça seja reposta. Mas o que dizer acerca do contrário? Os dois podem estar em lados opostos, mas sinceramente não há nenhuma diferença. Ambos operam fora da lei e lutam usando todos os meios necessários para obter aquilo que querem. São os dois lados da mesma moeda. Complementam-se.
Para se contrapor, mas paralelamente apoiar o Batman, está Harvey Dent. Primeiramente, Bruce vê no procurador de Gotham um substituto. Alguém que consiga manter as ruas limpas de crime, alguém que consegue, tal como ele, inspirar o bem, mesmo que de outra maneira. Uma vez que nem toda a gente se sente segura com a personificação consequencialista da objetividade judicial que recorre à chantagem e à violência, a melhor hipótese é que a esperança de uma população seja mantida (ou restaurada) por um novo símbolo da mesma, mas que recorra à não-violência; que seja o carisma, a razão, a educação, o respeito e a ordem em pessoa; um herói justo; um soldado de armadura reluzente … um cavaleiro branco.
Ou morres como um herói ou vives o suficiente para te veres a tornar no vilão.
Apenas Joker impede que Harvey se torne no novo mayor. Pessoalmente, sou um cego adepto da teoria que defende que o Joker é um soldado do Iraque. Que seja alguém que veio diretamente de um inferno hostil e violento. Tal antecedente explica os inúmeros seguidores, a “maquilhagem de guerra” e, claro, a revolta. Assim como o seu vasto conhecimento sobre armas, hackeamento e as marchas da polícia.
Mas acima de toda construção do personagem, o que é que o Joker quer? A sua intenção não consiste na obtenção de poder ou dinheiro, mas apenas na desconstrução das éticas e valores das ditas sociedades civilizadas, através da pura provocação de caos. Não somos tão nobres como pensamos ser. Em situações de ameaça individual ou coletiva, todos somos capazes de nos tornar nos monstros que nos esforçamos para meter atrás das grades todos os dias. De sacrificar uns para o bem da maioria. As tendências corruptas e homicidas de Gotham ficam à vista depois de qualquer capricho ou ameaça do palhaço. O Joker é a mais pura representação da anarquia e do niilismo no cinema. Afinal, não somos assim tão diferentes dele.
A solidez dos nossos valores morais é uma certeza que tentamos manter diariamente. E a facilidade de os ignorar em tempos de necessidade é grande. Estejamos a falar de um reles bandido de meia-tigela como do mais puro e exemplar cidadão. Depois de perder Rachel, Harvey Dent transforma-se e, depois de ficar dependente das escolhas alheias, entende que a única regra que deve obedecer é o puro acaso decidido por uma moeda. As escolhas do Batman e de Gordon colocaram a sua vida em questão. E, no final, o Joker ganha.
Escusado será dizer que “O Cavaleiro das Trevas” não seria o mesmo se Heath Ledger não tivesse sido escolhido. Juntamente com Daniel Day-Lewis em “Haverá Sangue”, o falecido ator australiano é um dos melhores exemplos de um artista que desapareceu totalmente e deu o corpo unicamente para o personagem. A construção do Palhaço Príncipe do Crime é perfeita em todos os aspetos: voz, fisicalidade, maquilhagem, timing cómico, ultra-violência e, claro, a insanidade. Heath deixa saudades.
Eu peguei no cavaleiro branco de Gotham e trouxe-o ao nosso nível. Não foi difícil. Repara, a loucura, como tu sabes, é como a gravidade. Tudo o que basta é um pequeno empurrão.
O Mundo é cruel. E a única moralidade num mundo cruel é o acaso. Imparcial. Sem preconceito. Justo!
O Joker, ao alterar deliberadamente as moradas, expõe mais uma fraqueza do Batman – o afeto. Com os minutos contados, entre salvar a mulher que ama e o salvador de Gotham, a escolha de um homem singular é óbvia. Mas antes estava outro objetivo do Joker – corromper A Regra do Batman. Nem que tivesse de dar o corpo às balas, o Joker queria que Batman decidisse matar. Colocar-se à frente do Batpod ou ser cruamente empurrado de um prédio pareciam boas (e engraçadas) opções na sua mente depravada. Mas enganou-se, o Batman demonstra-se incorruptível, para a sua insatisfação. Mas maior é a sua derrota quando os cidadãos se recusam a ceder semelhantemente.
Vejamos. Maior parte dos filmes do Christopher Nolan tendem a acabar com uma nota positiva, por muito negro que seja o comentário político-social feito. Falemos de “Dunkirk”. Por muito horrorosos que tenham sido os atos do ser humano durante a II Guerra, o espírito coletivo de solidariedade é maior que qualquer movimento de ódio, racismo ou medo. Debaixo de inúmeros aviões inimigos, milhares de ingleses decidiram atravessar o Canal da Mancha em velas e barcos de pesca para resgatar os indefesos 400 000 soldados. Se este não foi um dos maiores atos de coragem e da História não sei o que foi. O lado bom do Ser Humano é (e será) sempre maior que o seu lado egoísta e maldoso.
Contudo, o Joker perde esta batalha, mas ganha a guerra. Apesar de tudo, viver na ilusão do martírio de Harvey Dent provoca um inevitável bode expiatório, que é sempre baseado numa mentira. Ainda assim, mesmo que curto, o período posterior de paz acontece. Bruce Wayne, o homem por debaixo da máscara, para além de demonstrar a sua firmeza moral, age como um verdadeiro herói.
Eu sou o que Gotham precise que eu seja.
Porque ele é o herói que Gotham merece, mas não aquele que precisa neste momento. Por isso, vamos persegui-lo. Porque ele aguenta. Porque ele não é o nosso herói. Ele é um guardião silencioso, um protetor vigilante … um cavaleiro negro.
No fim de “O Cavaleiro das Trevas”, o verdadeiro herói não é necessariamente aquele que dá a cara pelo povo, mas aquele que demonstra o amor pela cidade da maneira mais altruísta possível. Aquele que habita nas sombras, nas trevas, aquele que dispensa qualquer forma de companheirismo, agradecimento ou engrandecimento. Aquele que não age por honra, mas sim para a prestação de um serviço público – a defesa nacional de um povo danificado pela tragédia e perda coletiva.